Wednesday 28 February 2018

Nos Desertos, nas Montanhas (XXXV): Alichur

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29-30/9/2012

Dezesseis bois e vacas caminham vagarosamente na planície bege. No horizonte, o Sol já se pôs, e sobe uma Lua quase cheia. O céu perto da Lua está em tons de rosa, vermelho, azul.

A Lua enfeitiça.

É um quadro de um mestre da pintura. As vacas, lentas, meus olhos, preguiçosos. O ar limpo demais, tênue demais.

Perto do lago Bulunkul, a pouca distância das vacas, mais beleza. O lago, a seus quase 3.700 metros de altitude, é de um azul profundo. Perto dele acompanhei a despedida do Sol dourado.

Ao redor dele, caminhei 30 minutos. Me agarrando a uma disposição que me surpreende após os acontecimentos das últimas horas, temendo por minha saúde. Parando e levantando os olhos, forçando-os a trabalhar, para apreciar o Teto do Mundo.

Logo após escrever meu diário ontem, fui dormir. Me sentia ótimo, havia jantado e estava com sono. Estranhamente, no momento em que encostei a cabeça no travesseiro, minha noite praticamente acabou. Meus olhos se abriram com o peso em minha barriga. A comida, sopa com pedaços de carne e pão, ficou parada no meu estômago. O sono não veio, o mal-estar cresceu e se transformou em tosse, febre, calafrios, tremores, náusea. A noite inteira foi um suplício de ir e voltar ao banheiro até que só bile me saía pela boca, e, ao voltar ao quarto, lutar para ficar quieto na cama e não tossir para não prejudicar ainda mais o sono dos meus colegas de viagem.

A manhã veio com um Sol lindo que me encontrou após um total de talvez uma hora de sono. Muito cansaço, dor no abdômen, dor de cabeça. E tudo sem entender o que poderia ter ocorrido, já que todos comeram no dia anterior o mesmo que eu.

Preocupado, Iker, que anteontem era o "doente" do grupo, descobre onde há um médico em Ishkashim. E vamos. Uma pequena clínica em uma casa cercada de grama amarelecida.

Lá dentro, dois enfermeiras, nenhum médico. As paredes brancas me parecem tão escuras. Uma enfermeira me deita em uma cama, passa a mão em meu abdômen. Senti um alívio. Diz que é simplesmente algo que eu comi e que não fez bem, que não há nada para fazer. Simplesmente o sorriso e as palavras de consolo já foram um tremendo tratamento. Agradeci, me agarrando à promessa de que, no dia seguinte, eu já estaria melhor.


* * *

Nos planos de hoje, deixar Ishkashim - mas antes, fazer uma breve visita ao mercado afegão. Minha primeira tentativa de vencer a letargia.

Ishkashim existe em dois países. Há a Ishkashim tajique e, do outro lado da fronteira, a sua irmã afegã, com o mesmo nome. Entre elas, o rio Panj, e no meio do rio, uma ilha. Todos os sábados, as cidades-gêmeas se unem em um dos eventos mais surreais da Ásia Central. É quando se realiza um mercado com vendedores dos dois lados. Ele acontece em uma terra de ninguém na ilha, um limbo que não é controlado inteiramente nem pelo Afeganistão nem pelo Tajiquistão. Visitá-lo é uma oportunidade de ouro para ver mais de perto o mundo proibido do outro lado do Panj, o mundo que vem nos acompanhando pela janela do nosso carro desde que chegamos ao Pamir.

Imperdível esse mercado, pensei. E fui me arrastando para o veículo com os olhos semifechados, tonto, enfrentando o Sol fortíssimo.

Nosso motorista foi se aproximando e, da estrada, enxergamos a ilha, que havíamos visto rapidamente ontem, quando estávamos chegando à cidade. Antes, estava vazia, havia apenas um galpão deserto. Agora, já de longe se vê a multidão colorida.

Estacionamos. Para entrar na ilha, há uma ponte. Na entrada dela, guardas tajiques pedem nossos passaportes. Não pedem para ver vistos. Apenas avisam que vão ficar com os documentos. Colocam eles no bolso e nos autorizam a cruzar a ponte. Fiquei pensando na possibilidade de eles desaparecerem de repente e venderem nossos passaportes para qualquer larápio falsificador de documentos. E em como, se isso acontecesse, me tornaria um prisioneiro desta terra.

Uma gota de suor corre pela minha testa. Que tremendo mal-estar. As pernas com dificuldade a cada passo, a barriga pesada com não sei o quê.

Em alguns segundos, estou em um lugar completamente diferente. Um universo de homens de turbantes e chapéus pakol, olhares cansados e barbas escuras. A pele do rosto, quando não oculta pelos pelos, novamente escura e enrugada, curtida como couro, a aparência típica dos habitantes do coração do Pamir.

Os afegãos andam de lá para cá entre as mercadorias estendidas em toalhas no chão. Vão contando maços de dinheiro. Entre eles, não vejo nenhuma mulher vestindo burca (aliás, entre eles, não há nenhuma mulher). Além dos afegãos, há outros turistas como nós, há homens pamiris com o chapéu típico (circular e raso, verde ou vermelho, cobrindo apenas o alto da cabeça), mulheres pamiris com seus véus de seda coloridos cobrindo parte do cabelo e soldados tajiques, todos com o uniforme sujo e gasto. Ouço muita conversa exaltada que me parece ser em dari e tajique, alguns vendedores arranhando o inglês, e ninguém, em absoluto, falando uma palavra de russo.

À venda: panelas, tapetes e roupas, utensílios de plástico, provavelmente tudo vindo da China. Alimentos, vegetais, grãos. Pakols. Tiro meu celular do bolso e, a esmo, me ponho a tirar fotos, sem mirar direito meus alvos, sem mesmo verificar se o foco está bem. Meu cérebro está em festa, quer absorver cada milissegundo desta experiência. Meu corpo é totalmente o oposto, quer uma cama. Minhas pernas querem desabar, meus olhos pedem trégua ao Sol. Vou para o galpão, a parte coberta do mercado.

Encontrado, encostado num muro, um velhinho. Turbante branco, barba branca, sentado, olhando para baixo, fazendo nós em uma linha. À frente dele, uma pilha de roupas à venda. Encurralado, triste, esperando que a morte seque de vez seu corpo e o devolva ao pó do ar.

Mais dez minutos ou menos de caminhada pelo mercado e chego ao meu limite. O Sol está forte demais. Fico em um canto, encostado, esperando meus amigos terminarem o passeio. Não consigo abrir os olhos. Estou triste, sofrendo com o meu corpo.

Das 13h, quando deixamos Ishkashim, até umas 16h, permaneci no banco de passageiros da frente do carro, ao lado do motorista, sem falar uma palavra, sem abrir os olhos, meio dormindo, meio delirando, vendo memórias do Brasil e da Inglaterra, não vendo lugares interessantíssimos. Com medo de não melhorar logo e perder muito mais.

Nosso próximo hotel foi novamente perto de um balneário termal. Subimos por uma estrada para o meio das montanhas e, ao chegar, estava repentinamente bem mais frio - vi um termômetro no hotel marcando seis graus. Me enfiei na cama enquanto meus amigos saíram para explorar ruínas de um forte não longe dali.

Acordei depois de mais ou menos uma hora, um pouco melhor. Engoli sem nenhuma vontade uns pedaços de pão amanhecido com mel, meia maçã e cinco goles de água. Daí fui enfrentar o frio - encarar a caminhada de volta pela estrada até as ruínas onde esperava ver meus amigos.

Cobri o pescoço e as orelhas o melhor que pude. Continuava com uma sensação de fraqueza, mas tinha muita vontade de ver onde eu estava. Não poderia mais ficar parado.

Atravessei o portão do pequeno hotel com passos lentos. A estrada era de uma terra cinza, e tudo estava nublado, com ventania. Tudo parecia inteiramente cinza, com tons infinitos da mesma cor.

A caminhada rumo ao forte foi com o vento contrário a mim. A poeira castigava meu rosto, chicoteando, dava para sentir cada grão arranhando minha pele em minha testa, em meus lábios, em meu nariz. Puxei o cachecol para proteger o rosto. Puxei junto um pouco da camisa e deixei descoberta parte da minha barriga. Um arrepio. Sentia a poeira entrando em mim, tomando os meus pulmões. Um sofrimento a cada passo e a ruína nunca parecia se aproximar. 20 minutos, meia hora de cinza. Tropeços no cascalho do caminho (veja o vídeo abaixo).



Por fim, chego. A fortificação tinha uma localização perfeita. Em um penhasco altíssimo, com uma vista de tirar o fôlego das montanhas do lado afegão. Chama-se fortaleza de Yamshun. Nenhuma ideia de quão velha, certamente de séculos e século, dado o seu atual estado. Sentei-me à beira da estrada para esperar a meus amigos, os quais já conseguia ver, ziguezagueando por entre os muros deformados pelos elementos, com suas câmeras frenéticas. Sentado, senti mais que a poeira. Senti a altitude. É a sensação de respirar, respirar de novo, respirar fundo e seguidamente, e não sentir que se está respirando o suficiente.

Pouco depois, Iker e Kim voltaram, sorrindo, felizes de me ver, felizes pelo prêmio da fortificação, da exploração, do isolamento do Pamir. A volta ao hotel foi muito mais fácil. Eu ainda estava me sentido mal. Mas o vento estava a favor.

Mais tarde, meus colegas de viagem me convenceram a tomar um banho na fonte termal de Bibi Fatima, a uma distância curta pela estrada. A fonte é conhecida em toda a região pela lenda associada a ela. Fica dentro de uma caverna, e se toma banho em um poço natural em uma pequena sala criada pelos caprichos da natureza. É um útero natural, dizem. E por isso a fonte atrai mulheres interessadas em ter filhos. Acreditam que, ao se banharem na câmara, serão abençoadas pela fertilidade.

A impressão que se tem ao entrar na caverna é de mistério. Demora para se ver a água. Há uma escada descendo entre as pedras, no topo da qual encontramos um senhor coletando o dinheiro da entrada. A escada nos conduz a uma casinha construída lá dentro da própria caverna, com uma sala onde os visitantes podem se trocar. Então já é possível ouvir o barulho de cachoeira. Logo se desce mais um pouco e, finalmente, na penumbra, se encontra o tal útero natural: água quente caindo e embaixo, dentro da água, espaço para umas 15 pessoas ao mesmo tempo.

A água tem uma temperatura de uns 35 graus, extremamente agradável, bem diferente de Garm Chasma, que era quente demais. Entrar naquela banheira foi um prazer incrível. Imediatamente, como que por milagre, me senti totalmente recuperado. Pena que não pudemos ficar mais que dez minutos, pois a fonte estava fechando para a noite.

Na volta para o hotel, minha letargia foi voltando aos poucos. Dormi das 20h às 5h. Das 5h às 7h, fiquei me revirando na cama com uma dor de cabeça insuportável.

Água quente e pão no café da manhã. Minha barriga parou de doer, porém a dor de cabeça continuava. Tomei meu antibiótico para a infecção renal, o que o médico me receitou em Dushanbe, e um paracetamol. Eram 8h30 quando entramos no carro e começamos a descer a montanha, gradualmente saindo das nuvens e entrando no ensolarado vale do Panj.


* * *

Neste trecho, o rio passa por mudanças. Em vez de único, volumoso, com ilhotas e correntezas, ele cria curvas e vai serpenteando por uma planície de terra. Se abre em vários canais rasos que se separam e se unem. Com sua nova personalidade, o rio colabora para aumentar a poeira do ar. O pó de suas margens cobre todo o carro.

No vilarejo de Yamg encontramos um numeroso grupo de turistas. Eram espanhóis, todos aposentados. Seguiam com uma guia de uns 40 anos, quirguiz com espanhol fluente, ao mesmo tempo testemunha de um bom legado soviético (o bom acesso à educação que lhe permitiu aprender o espanhol) e das oportunidades do capitalismo. Claramente orgulhosa do que se tornou, Sofia me disse ter aprendido espanhol ainda na adolescência quando fez um período de intercâmbio em Cuba. Hoje, ela tem uma empresa de turismo em Bishkek, trabalha como guia para turistas endinheirados do mundo hispânico.

Encontramos a excursão espanhola em um lindo pequeno museu, uma pérola, mantido em memória a um iluminado mestre sufi ismailita que morou no século XIX neste canto remoto, Mubarak-i-Wakhani (1843-1903).

O sábio se tornou conhecido principalmente por seus poemas. Escrevia em língua persa como os grandes Saadi ou Hafez, assim mantendo uma longa tradição e trazendo-a para as margens do Panj. Não obstante, não era apenas um poeta. Wakhani era uma espécie de gênio no estilo dos gênios renascentistas, uma espécie de Leonardo da Vinci, um autêntico polímata. É celebrado também por ter criado um tipo de papel, por construir instrumentos musicais e por desenvolver uma espécie de calendário solar usando pedras colocadas em uma montanha próxima, as quais ele observava à distância a partir de outra colocada perto de sua casa, onde fica o museu.

O lugar, claramente reconstruído e redecorado, é, primeiramente, uma celebração da arquitetura pamir. Uma casa com um pórtico de madeira com colunas trabalhadas, esculpidas com doçura. Pinturas coloridas e abstratas decoram a fachada em azul e amarelo. O interior do museu tem a claraboia familiar, com seus quadrados concêntricos, deixando entrar a luz perfeita, e seus pilares e palcos. Tudo decorado com capricho, cores, padrões geométricos e madeiras com caracteres árabes e outros motivos. Do lado de fora, sobre o muro que cerca a casa, chifres - novamente o misterioso símbolo que vimos no "templo do bode" perto de Ishkashim.

Os instrumentos musicais estão em uma sala e eram usados por Wakhani para mostrar sua devoção e adorar a Deus, se aproximando do divino, como buscam todos os sufis. O administrador do hotel - um senhor de uns 50 anos, tataraneto de Wakhani - tocou dois dos instrumentos, um deles lembrando um alaúde de dois braços e muitas cordas. Trata-se de uma variação do rubab, considerado o instrumento nacional do Afeganistão, mas sem dúvida os dois braços o tornam especialmente exótico. Produz um som enigmático, grave, que evoca solene reflexão.

O mesmo sentido sufi aparece nos poemas de Wakhani: veneração, a busca pela aproximação ao divino. Wakhani teria escrito durante sua vida cerca de 60 mil versos. Eles reforçam os conceitos do ismailismo e enfatizam a tolerância com os outros. Talvez seja essa postura que o tenha tornado tão celebrado, enaltecendo uma postura que pode ter ajudado a salvar todos os ismailitas pamiris das sucessivas ondas de invasões de muçulmanos de outros ramos do Islã que os enxergavam como hereges: buscando não rechaçá-los com violência, mas apresentando a eles uma mensagem de bondade e sabedoria que deve estar no coração de todo muçulmano. Como diz Wakhani em um de seus manuscritos:

O significado da infidelidade e do Islã é este:
Um é escuridão, o outro, iluminação.
Tens o dom da visão para enxergar as falhas dos outros,
Mas o olho de seu coração é cego a tuas próprias falhas.
Você não deve, ó Mubarak, fazer o mal aos outros,
Mas ser capaz de matar seu próprio mal primeiro!

- Tarjamat al-Bayan ("Clareza de Sentido") em The Ismaili-Sufi Sage of Pamir, Mubarak-i-Wakhani, and the Exoteric Tradition of the Pamiri Muslims, Abdulmamad Iloliev


* * *

Adeus ao Panj - perto de mais um vilarejo, Zong, chegamos ao nascimento do rio, quando ele surge da junção de dois menores, o Wakhan (que segue pelo meio do Corredor de Wakhan, dentro do Afeganistão) e o Pamir, que a partir daqui marca a fronteira tajique-afegã. Estamos agora entrando no "Teto do Mundo", o planalto do leste do Pamir, onde o cenário é dominado por uma vasta área plana com mais de 3.500 metros, cercadas de montanhas ainda mais altas e lagos belíssimos.

Seguimos pela estrada à beira do rio Pamir, até que ela faz uma curva e finalmente se afasta do rio e da fronteira, rumo ao Planalto. Nessa transição, conheceremos a divisão étnica do Pamir, abandonando os povos ismailitas das margens do Panj e do Corredor de Wakhan e encontrando as comunidades de quirguizes que há séculos ocupam as terras altas, mais para o norte. Não seguiremos até a ponta do Corredor de Wakhan tajique - embora pudéssemos continuar mais um pouco por regiões ainda mais remotas e inacessíveis, ainda mais mágicas, até o fim da estrada. E então, ou caminhando, ou com cavalos ou iaques, seguir pelo nada até a fronteira chinesa.

Um dia, quem sabe. Por ora, seguimos para o norte.

Um dos maiores lagos da região do planalto é o Bulunkul. Após nos despedirmos do rio Pamir, a estrada sinuosa de terra nos levou a ele. E ao chegar, tive a impressão de que o tempo parou.

O azul escuro do corpo d'água acompanha o horizonte e as montanhas por 180 graus. O Sol das quatro e meia da tarde se choca contra ele, mas os raios de luz são completamente absorvidos, não há nenhum reflexo. Nem sequer vejo irregularidades na superfície da água que pudessem denunciar o vento, lento, fraco, ameaçando desaparecer.

Paramos o carro e decidimos ver o Bulunkul de perto. Iker e Kim somem atrás de uma colina à beira do lago e, de repente, no meu campo de visão não há uma alma viva. Nenhuma casa, nenhuma iurta, nenhum inseto, nenhum pássaro, nenhum iaque, nenhum camelo, nenhum carro. Tanto, tanto espaço. Um ar que não traz absolutamente nenhum som, tudo está absolutamente parado. Tanto, tanto espaço aqui e, nas grandes cidades que se tornam cada vez maiores e mais comuns, cada vez menos. Lembro-me brevemente de São Paulo na hora do rush, sete da noite no congestionamento infinito e o barulho dos motoboys na janela. Dou uma breve risada para abandonar esses pensamentos. Em um piscar de olhos, abandono qualquer pensamento. E também paro, e me torno vazio.

Após anoitecer no lago, encontramos um vilarejo não muito longe. É onde tentamos achar um restaurante e uma hospedagem.

Eis a vila de Alichur: um conjunto de casas simples, feitas de concreto, longamente separadas uma das outras pela poeira do planalto, circundada por colinas baixas. Um clima de velho oeste americano, de estar em uma região em que os habitantes são todos corajosos pioneiros, teimosos colonos em uma terra absolutamente inóspita. A desolação aumentou ao encontrarmos o vilarejo sem luz elétrica, enfrentando um apagão.

Passamos por três estabelecimentos que serviam comida (chamá-los de restaurante talvez seja muito - eram mais casas de família que tinham refeições). Apenas o terceiro estava aberto. Um frio incômodo, com um vento a soprar e parar constantemente, sensação próxima de zero grau. E estamos no fim do verão.

Ao entrarmos no "restaurante", apenas a luz do pós-anoitecer distante entra pela porta. Logo um gerador é ligado e algumas lâmpadas passam a iluminar nossos rostos. Quase congelado, peço simplesmente um copo de água quente (chá provavelmente me tiraria o sono depois). Em seguida, me trazem um espantosamente bom laghman, o talharim rústico comum em toda a Ásia Central. A massa esquentou minha alma.

Depois os donos do lugar nos conduziram a um quarto logo ao lado do salão onde comemos. Algo simples: tapetes no chão, edredons empilhados num canto, sem camas. Um forno-bujão a lenha já queimando, logo ao lado da porta, esquentando todo o ambiente.

Quase tudo ótimo. O lado ruim, é claro, era o banheiro. Como em quase todos os lugares em que ficamos no Pamir, ele ficava do lado de fora. Para chegar a ele, neste caso tínhamos que sair do quarto (e do calor), dar cinco passos em um corredor escuro e abrir a porta para o lado de fora, frio, gelado, congelante. E à vista, a uns 15 metros de distância, no meio do terreno do vento, iluminada só pela Lua, uma pequena cabine de madeira velha, com uma portinhola sem tranca. Dentro dela, sem teto, um buraco no chão.

Na verdade, a Lua dava à cabine um quê de poético ou mágico - algo como a sensação de que entrar nela conduziria a uma realidade paralela, completamente diferente à depressão de Alichur. Como se a cabine fosse um portal para outro lugar, mais aprazível.

Contudo, foi difícil me ater à poesia enfrentando os quilômetros entre meus edredons e o buraco no chão às duas da manhã, de pijama, ainda convalescente de uma infecção renal e do misterioso sobressalto digestivo de Ishkashim.

Murghab, 2/10, 10h31

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Sunday 25 February 2018

Nos Desertos, nas Montanhas (XXXIV): Ishkashim

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28/9/2012

Deitamos à sombra numa cama de madeira, ao ar livre, eu, meus companheiros de viagem e nosso motorista. Ao nosso redor, um pequeno paraíso. Mais um, como o de Lutfollah em Shakhrisabz, como tantos outros. A Ásia Central é uma sucessão de pequenos paraísos secretos.

A sombra é de macieiras completamente carregadas, com frutos tão vermelhos que pareciam ter sidos pintados à mão. Nosso anfitrião preparou bem o nosso cantinho. Cobriu a cama com cobertores e edredons macios, encomendou o horizonte aberto, o Sol amistoso, a vista para um pico nevado quilômetros à frente, além do vale e da plantação de batatas. Na plantação, logo embaixo de onde deitamos, uma mulher com seu lenço colorido na cabeça labuta, sua profusamente, cava com força o chão duro. Mais perto de nossa cama, vejo vários sacos de pano surrados com pelo menos dez quilos de batatas.

"Temos que nos preparar agora para o inverno", diz nosso anfitrião, um policial que trabalha em Dushanbe e está de folga, visitando familiares. Em seu olhar, algo de culpa, culpa talvez de ter que ser tão duro em seu trabalho no dia a dia, duro com os servos do ditador na capital. E, ao mesmo tempo, algo de doçura, a doçura que aflora com naturalidade ao reencontrar este paraíso, o sítio que agora compartilha conosco.

Bigode bonachão, sorriso permanente. Disse que só visitava sua família no Pamir uma vez por ano. Tivemos muita sorte de encontrá-lo na saída de Garm Chasma, pedindo carona. Nós aceitamos fazer um pequeno desvio e levá-lo de lá até o sítio, onde mora de forma permanente um de seus irmão. A propriedade fica perto da estrada principal, a que segue à beira do rio Panj, já quase chegando ao nosso destino de hoje, Ishkashim. Como é tradição por aqui, como pagamento pela carona, ele ofereceu sua hospitalidade. Aceitamos, curiosos.

A hospitalidade no Pamir é lendária.

Antes que a comida chegasse à cama - ele insistiu que almoçássemos com ele -, o policial bonachão nos levou para conhecer a propriedade. Reforçou que o paraíso era igualmente dele e de seu irmão. Falador, detalhou seu planos para o futuro. "Aqui, nesta área do terreno, quero construir mais uma casa, mas essa nova, só para relaxar." Contudo, ressaltou que não tem planos de voltar de vez para o Pamir. "Minha mulher, meus filhos estão todos em Dushanbe. Minha vida é lá." Nisso, sorri com nostalgia. "Mas, quando me aposentar, em dois anos, vou vir mais vezes para cá." Senti seu coração dividido. Se tivesse a liberdade da juventude, poderia seguir seu coração.

Nos levou para o interior das casas da propriedade, onde moram, além do irmão, os filhos do irmão e suas esposas, a extensa família toda dividindo o mesmo vasto terreno. Em uma das casas, na parte alta, encontramos uma sala coberta com edredons coloridos com cores absolutamente berrantes, lindas, com muito vermelho vivo, exalando um calor que deve ser um consolo nos meses de frio. Que vontade de deitar e rolar nesse macio colorido e fazer bagunça, como um filhotinho de cachorro.

Na casa principal, numa parte inferior do terreno, um exemplo da arquitetura interna típica pamir. A sala tem um palco, ou seja, dois níveis. O mais baixo, quadrado e com uma ligação com a cozinha, guarda um sofá. Ao redor desse quadrado, um segundo nível, mais alto, tem carpetes onde as pessoas se sentam para comer. No centro da sala, logo acima do sofá, a fonte de luz natural: uma claraboia singular. Toda casa por aqui parece ter uma claraboia assim. São quatro quadrados concêntricos - um grande, dentro um menor, dentro outro menor e por fim um último, que dá acesso à luz exterior. Os quadrados se interpõe com os seus vértices coincidindo com o ponto médio de cada lado do quadrado maior anterior, criando assim uma mandala de triângulos retos. Explicam-me que os quatro quadrados representam os elementos - terra, água, ar e fogo.

Nas paredes, um grande calendário islâmico, fotos da família, uma foto do Aga Khan e sua esposa. Na estante, o detalhe mais interessante - um pequeno busto de Lênin. Perguntei ao bonachão por que ainda tinha aquilo, 20 anos depois do fim do sonho. Abriu um sorriso largo. "Lênin é nosso amigo", afirmou. "Lênin, Stálin, Marx e Engels são como quatro irmãos para nós." Perguntei se ele achava que nos tempos da URSS ele e sua família viviam melhor que agora. "Eram tempos diferentes. Era bom, como agora também é bom. Agora podemos viajar, conhecer outros países, mas trabalhamos muito também."

O irmão, morador da casa principal, logo apareceu para tomar vodka conosco. Me falou com grande orgulho do que, disse, foi um dos maiores momentos de sua vida. "Sou professor de russo. E, em 1980, o governo me deu uma passagem para ir a Moscou, ver a Olimpíada. Naquela época, os trabalhadores mais esforçados recebiam recompensas. Fui a Moscou só para passear."

A conversa é interrompida pelo bonachão, que nos chama para testemunhar um ritual de milênios - a degola da cabra que será usada para fazer nosso almoço. Um sacrifício especialmente para a ocasião, para alimentar os visitantes. Me desculpei por preferir não assistir o espetáculo de sangue. Optei por ficar na sala, conversando, tirando fotos da decoração.

Hora depois, estamos de volta à cama no jardim, agora tomada por todo tipo de delícia - maçãs, frutas secas, salgadinhos industrializados, suco, vinho, vodka, cerveja, refrigerante, kumiz, geleia, manteiga, queijo, pão (muito, muito pão), enfim, tudo o que eles tinham em casa. Não demora muito e chega o prato principal - batatas e cebolas, cebolinha e carne em cubos, tudo junto, cozido, um grande ensopado. A carne é a mesma que estava pouco antes berrando no terreno. Nunca antes isso ficara na minha cabeça, mas desta vez, não saía. Mesmo enquanto mordia com fome a carne, dura, mas muito saborosa.

Mais uma hora se passou e começamos a insistir que precisávamos seguir viagem. Após pelo menos dez tentativas de partir - às quais o anfitrião respondia sempre com pedidos de mais brindes com chá, kumiz, cerveja e vodka -, finalmente conseguimos convencê-lo a nos deixar ir. Mas, antes, as últimas fotos: desta vez, reunimos a numerosa família do bonachão na sala de estar, sob o olhar do pequeno amigo Lênin. Todos, incluindo até as sapecas crianças, que surgiram sei lá de onde, estavam escondidas até então.

Mais fotos de nós com os irmãos e as macieiras carregadas. Fotos de mim juntamente com o bonachão e Iker.

Sem foto, agarro uma maçã para a viagem.

Na despedida derradeira e definitiva, quase beijei o rosto do meu anfitrião. Deveria ter beijado.


* * *

Nos arredores de Ishkashim há um pequeno e misterioso santuário.

Perguntamos a agricultores locais que passavam pela estrada onde ele ficava (estava indicado em nosso livro-guia) e um deles apontou o lugar, mais adiante. Paramos o carro e fomos a pé. Em um muro à beira do caminho, protegido por árvores, encontramos uma porta de madeira. Logo acima dela, alguém havia colocado vários chifres de bodes selvagens ou carneiros-de-Marco-Polo. Os chifres, como uma coroa. O que significa isto?

A porta estava aberta. Entramos.

Atrás da porta, encontramos um pátio e uma pequena edificação, uma casinha, com um portal. Um portal de madeira, com colunas sustentando o teto avançado do pequeno templo, colunas todas esculpidas em madeira.

Nenhuma inscrição, nenhuma placa. Em cima do portal, uma cabeça inteira de carneiro-de-Marco-Polo, uma cabeça escurecida, parecia mumificada.

Sua superfície escura, os olhos brancos, provavelmente pedras, lhe davam um ar soturno e sugeriam perigo a quem se atrevesse a atravessar o portal. Algo como o Egito antigo. A imagem de um deus-bode protegendo a tumba do faraó. Eu, Howard Carter.

Atravessando o portal do "templo do bode", por fim, encontrei uma segunda porta de madeira. Logo acima da porta, o retrato de um homem barbado. Novamente a porta estava aberta, apenas encostada. Entrei.

Encontro uma câmara pequena, talvez três metros quadrados de área. No teto de madeira, a claraboia típica do Pamir, os quadrados, um dentro do outro. Uma janela em uma parede. No chão, um estranho cubo de concreto, branco, com altura até cerca de minha cintura. Em cima dele, meias-esferas de pedra enterradas nos quatro vértices do cubo, duas grossas fendas na pedra para colocar velas ou incenso e, no meio, mais chifres de bode, empilhados de forma desordenada.

Apesar da associação ocidental imediata de chifres com Satã, não há nenhum demônio associado a este pequeno santuário. Reza a tradição que, neste local, neste cubo, estaria sepultado o primeiro Imã dos xiitas, Ali. Trata-se de uma lenda pouco conhecida entre as inúmeras lendas sobre o local de enterro do Imã. A mais conhecida diz que seu corpo está em Najaf, no Iraque. Há os que digam que está em Mazar-i-Sharif, no Afeganistão, perto da fronteira uzbeque, não muito longe daqui.

Mas poderia Ali estar, na verdade, sepultado na longínqua Ishkashim? Estariam os milhares de xiitas que fazem peregrinações a Najaf sendo enganados? Difícil vê-los fazendo a mesma peregrinação, que fazem hoje ao Iraque, a este canto do isolado Pamir, para expressar sua dor.

O local, em realidade, não parece em nada islâmico. Não há inscrições, por exemplo. O único sinal de Ali é o seu retrato (o do homem barbado, que vi em cima da segunda porta). Tudo é muito simples. Mas talvez fosse justamente isso, e não a reverência em Najaf, que um homem santo como Ali iria preferir.

O uso da cabeça de bode e dos chifres liga este pequeno santuário a ancestrais tradições da cultura local, muito anteriores à chegada do Islã. Fés que envolvem a adoração da natureza. Há os que digam que os chifres são para a proteção contra o mal, como carrancas. Outros, que é para atrair saúde (dado o vigor do animal). Associar estes símbolos a Ali é a manifestação clara do sincretismo centro-asiático, de como o Islã, ao chegar tarde a esta região, encontrou já desenvolvido todo um simbolismo e se adaptou a ele.

E, ainda assim, este santuário é sim islâmico, um representante de um Islã natural, o que se vê refletido nas tradições e na cultura dos fieis. Lembro de minha visita aos mazars de Sayram, no Cazaquistão, e as conversas com Rustem.

Com medo de perturbar o sono dos carneiros decapitados, tiramos nossas fotos em silêncio. Fizemos questão de verificar se as portas estavam bem fechadas ao sair. Não trancadas. Esperando o próximo visitante com seu mistério acolhedor.


* * *

Ao lado do rio Panj e sob a guarda dos picos nevados e imponentes, uma fortaleza com 24 séculos de idade ainda resiste.

A fortaleza de Khaakha data dos tempos do império kuchano - o mesmo responsável pelo Buda deitado do museu em Dushanbe -, do século 3 depois de Cristo. Construída sobre uma elevação natural, ainda apresenta torres e muralhas impressionantemente preservadas em se tratando de algo tão velho. Evidente que devem ter sido reconstruídas e reformadas posteriormente.

Historiadores acreditam que a fortaleza certa vez foi ocupada por um obscuro grupo de guerreiros zoroastristas conhecido por se vestir inteiramente de negro e que atuavam a serviço de um líder local.

Lindo e imenso. Perdi-me no labirinto de pedras sem nenhuma inscrição, nenhum guarda ou supervisor, como em Sauran. Fiz uma longa caminhada nos altos e baixos da construção, altos e baixos ausentes nas cidades perdidas da Rota da Seda que visitei no deserto cazaque. Em cada parada para recuperar o fôlego, o ar frio castigava meu nariz e minha a boca. Na minha frente, o rio Panj, cinzento, no seu caminho para as montanhas nevadas no horizonte (veja o vídeo abaixo).



Seguindo uma trilha mal marcada nas pedras e na argila, cheguei finalmente à água do rio. Molhei minha mão e meu pé. Puro degelo marcando a fronteira tajique-afegã. Na outra margem, tão perto, quiçá 30 metros, só algumas braçadas, o país proibido, o país do perigo constante. Parei mais uma vez para olhá-lo. Sem vida, sem homens ou animais. Só vejo o movimento das corredeiras na sua fronteira, depois, morte. Um dia irei visitá-lo, descobrir sua vida.

Por ora, com a mão molhada, saio para reencontrar meus amigos e fazer mais fotos. Já os vejo na estrada. Ao lado deles, passa um pastor com cabras. São seis da tarde, a luz é incrível, uma luz dourada, intensa. As cores da paisagem parecem todas mais fortes.

Saudamos o pastor com sua boina e seu cajado. Saudamos seu sorriso, seu convite para tomar chá em sua casinha. O Sol em seus olhos quase fechados pelo brilho. O Sol em suas rugas, em todo seu rosto.

Ishkashim, 28/9, 21h30

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Wednesday 21 February 2018

Nos Desertos, nas Montanhas (XXXIII): Garm Chasma

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27/9/2012

Dia tumultuado. Fui acordado à meia-noite por nossos amigos. Iker já vinha sofrendo com problemas intestinais, mas agora estava passando muito mal. Disse que estava com uma dor de cabeça insuportável e muita diarreia. Pediu para voltar para Khorog, pensando que seus sintomas pudessem ser por causa da altitude (Jelondi está a cerca de 3.500 metros de altitude). Eu, como um zumbi de tanto sono, arrumei minha mochila e fui enfrentar com eles a rodovia do Pamir na mais completa escuridão. Obviamente ficamos preocupados com o motorista, coitado, que havia dormido pouquíssimo após 10 horas de volante e chacoalhadas nas montanhas (das 8h às 18h).

No caminho, o susto maior foi causado por um caminhão parado no meio da estrada, provocando uma forte freada. Por alguns segundos, vimos a morte. Mas, mesmo com o susto, não continuei alerta durante o resto de nossa jornada de volta a Khorog. Meus olhos se recusavam a abrir. Em uma hora, talvez mais, chegamos. Fomos conduzidos ao mesmo lugar que ficamos antes, a casa dos parentes de Rozik. Nossas camas ainda não tinham sido ocupadas por ninguém.

Acordamos umas sete horas depois e então saímos para caçar um médico para Iker. O espanhol, eu, Kim e o dono da casa onde pernoitamos, Fayz. Na clínica no centro da cidadezinha, encontramos uma médica falando excelente inglês (cortesia da universidade do Aga Khan em Khorog). E ela explicou a Iker o que me parecia óbvio - seu problema não tinha nada que ver com a altura e sim com micróbios em seu trato intestinal. Receitou alguns remédios. Psicologicamente, acho que ver a médica foi excelente para meu amigo. Tomar remédios é um sinal prático de que você está tentando vencer o seu problema de saúde, o que, no caso dele, estava fazendo da viagem um inferno. Como fez da minha, especialmente em Istaravshan e Dushanbe.


* * *

Minha passagem pelo pequeno mercado de Khorog. Me perco entre as pessoas levando vegetais de lá para cá e, em um canto, acho a barraca de um afegão. Acho que foi a primeira vez que vi um afegão em pessoa. Ele era como os homens nas reportagens sobre o Talibã - barba, chapéu pakol (uma espécie de boina de lã, plana como uma panqueca), nenhum sorriso. Olhos claros, amarelos, uma cor irreal. Também acho que foi a primeira pessoa que encontrei em toda a viagem que não falava sequer uma palavra de russo. Nas cidades cazaques de Taraz e Shymkent, onde também tive problemas para me fazer entender, os jovens, que já não aprendem russo na escola, pelo menos sabem algo da língua - afinal, o cazaque foi fortemente influenciado pelo russo, todos têm familiares que aprenderam russo na escola nos tempos da URSS, todos estão cercados de russos e descendentes que continuam vivendo no sul do Cazaquistão. No caso deste senhor, ele nunca teve um contato com o universo cultural e linguístico dos vizinhos do norte. O Afeganistão nunca fez parte do império russo nem nunca foi tomado pelos soviéticos - estes, bem que tentaram, mas amargaram uma traumática derrota sob os tiros dos mujahedins na guerra dos anos 1980 (1979-1989).

Para reforçar sua ligação com o Afeganistão, o senhor, ainda por cima, vendia pakols. Peguei um à venda e me dirigi a ele em russo. A resposta foi a expressão de incompreensão completa no rosto. Acreditei que ele falava a língua afegã dari, que é muito parecido com persa. Tentei algumas palavras, mas percebi logo que o pouco farsi que aprendi em minha viagem ao Irã já se perdera. Fomos tentando, por mímicas, até que comprei o lindo pakol por 50 somoni (cerca de US$ 6).

Partimos de novo de Khorog às 13h30. Desta vez, em vez de explorar o coração das altas montanhas do Pamir, seguiríamos pela estrada, paralelamente à fronteira afegã, paralelamente ao rio Panj, rumo ao Corredor de Wakhan, o estreito braço de território afegão (parecido com um cabo de panela) que separa um território anteriormente colonizado pelos britânicos, o Paquistão, do território que pertenceu ao Império Russo.

O Corredor é uma relíquia bizarra, e talvez a mais evidente, do "Grande Jogo" geopolítico travado na Ásia Central no século XIX - aquele que levou Stoddart e Conolly a serem executados pelo emir de Bukhara. Naquela época, o Império Russo e o Império Britânico se viram disputando influência na região - influência que, é claro, se traduziria em ganho financeiro, mercados (centro-asiáticos) para as exportações russas e britânicas e fontes (centro-asiáticas) de matéria-prima para as metrópoles. De fato, a disputa do terreno por pouco não se traduziu em uma guerra. Para os britânicos, o grande medo era que os russos chegassem à Índia. Em meio à tensão surgiram lendas: viajantes-espiões que cruzavam do lado dominado pelos russos ao lado dominado pelos britânicos e vice-versa. Assim, logo ficou claro que criar uma barreira entre os territórios dominados pelos britânicos e pelos russos era necessário.

Em um dos mais divertidos romances históricos já escritos sobre o tema, Peter Hopkirk explica o nascimento do Corredor:

Londres tinha concluído um acordo com São Petersburgo que finalmente estabeleceu a fronteira entre a Ásia Central russa e o Afeganistão ocidental. Além disso, o vão do Pamir, que por tanto tempo preocupou estrategistas britânicos, tinha sido fechado. Com a aprovação de Abdur Rahman (emir afegão entre 1880 e 1901) um estreito corredor de terra, anteriormente pertencente a ninguém e se prolongando até a fronteira chinesa, havia se tornado agora território soberano afegão. Embora não mais que 10 milhas (16 km) de largura em alguns trechos - o mais perto que a Grã-Bretanha e a Rússia haviam até então chegado de se encontrar na Ásia Central - este corredor garantiu que em nenhum lugar suas fronteiras de fato se tocassem. Reconhecidamente, ele deixou os russos com a posse da maior parte da região do Pamir. Mas os britânicos estavam cientes de que, se São Petersburgo decidisse anexar a área, eles seriam virtualmente incapazes de evitá-lo.
- The Great Game, The Struggle for Empire in Central Asia, Peter Hopkirk

Lhe falta a Hopkirk um pouco de precisão, contudo. O Corredor afegão, na verdade, chega a ter apenas 13 km entre os pontos mais próximos das fronteiras tajique e paquistanesa. De comprimento, tem 350 km, e só termina quando de fato encontra a China em uma divisa curta e sem nenhum posto de fronteira. Todo o Corredor está, sem a menor sombra de dúvida, entre os terrenos de mais difícil acesso em todo o mundo. Não só não há estradas de verdade, a não ser a pela qual viajamos do lado tajique da fronteira, como também o terreno é todo tomado por montanhas altíssimas e esparsamente povoado. Nos últimos anos, a fama de guardar extremistas do Talibã e plantações ilegais de papoula afastou ainda mais os visitantes. Entretanto, o local tem grande potencial turístico. Além de belíssimo, provavelmente teve importância histórica como parte da Rota da Seda, e há estudiosos que acreditam que foi por ele que Marco Polo fez a travessia para a China no século XI.

Seguindo para o corredor, voltamos a ter uma boa visão de vilarejos afegãos perdidos do outro lado do Panj, nosso companheiro constante à direita da estrada. As casinhas de barro simples, burros e altos montes de feno. À distância, os montes parecem pequenas pirâmides, anexos estranhos às casas, como torres de castelos.

Desta vez, a jornada foi curta. Às 15h, chegamos ao sanatorium de Garm Chasma, um complexo hoteleiro ao lado de uma fonte natural de água sulfurosa. Novamente, uma visão irreal. O carro se aproxima do complexo e logo se vê uma formação geológica multicolorida, na certa criada pelo acúmulo de minérios e enxofre expelidos pela fonte termal. Lembra uma grande colmeia, mas seu tamanho, com uns três metros da altura, não deixa que se acredite facilmente que se trata de um trabalho da natureza.

O forte cheiro de ovo podre toma o ar juntamente com a névoa quente, saindo da colmeia. Na entrada da fonte, uma placa estabelece horários alternados para que homens e mulheres possam se banhar. Percebemos que o último horário para o banho masculino já havia passado. Ficamos de provar o banho de ovo podre no dia seguinte, de manhãzinha.

Faço um passeio pelo vilarejo ao redor da fonte, um lugar muito pobre, com casinhas muito simples, todas as ruas de terra, todos os moradores, trabalhadores do campo. Passando por algumas casas, cheguei perto, finalmente, das pirâmides de feno que vi à distância no lado afegão. São alimentadas por mulheres com roupas coloridíssimas que cruzam as ruas de terra como formigas, carregando com velocidade imensos fardos de palha nas costas. Há muitas crianças brincando na rua, muitas cabras, poucos carros.

Na volta para o hotel, já escurecendo, temperatura baixando, jantar simples - um prato com arroz, uma espécie de hambúrguer e salada de tomate e pepino. Caiu muito bem. Na cama, dois edredons. Seguramente menos de dez graus durante a madrugada.

Garm Chasma, 28/9, 6h52

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Sunday 18 February 2018

Nos Desertos, nas Montanhas (XXXII): Jelondi

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26/9/2012

O Pamir é ao mesmo tempo fértil e estéril, ao mesmo tempo habitável e desolado, ao mesmo tempo sorridente e repulsivo, de acordo com o ponto de vista de onde ele é observado. Ele está entre os paradoxos intencionais da natureza.
- The Pamirs and the Source of the Oxus, George Curzon, 1896

A 4.200 metros de altitude, as montanhas, mesmo as mais distantes, parecem mais próximas. O ar vem sob o efeito da neve nos picos, às vezes dolorosamente gelado como os glaciares eternos nas alturas, às vezes apenas frio e tolerável, refletindo o degelo do verão.

O carro sacode em uma estrada mal marcada, praticamente inexistente. Nenhuma casa. Dos dois lados, tudo quase plano - um ligeiro declive do meu lado esquerdo. Vejo pela janela dezenas de ovelhas pastando. Além das ovelhas, além do declive, as montanhas nevadas, perto e longe. E mais além ainda, picos fabulosos. O motorista me fala que são os picos Karl Marx (6.723 metros) e Engels (6.507).

Paramos o carro para olhar ao redor. De repente, surgem entre as ovelhas três cachorros. Um deles, muito tímido e mais velho, quase não chegou perto. Outro chegou, mas ficou só olhando, desconfiado. O terceiro, um castanho, se jogou sobre nós, querendo cafunés.

Chega o pastor, o dono dos cães e das ovelhas. Cajado, olhos profundos, pele vermelha e negra, curtida até o limite pela secura imensa deste planalto, pelo frio imenso, pela altitude, pelo ar rarefeito. Quieto, com roupas ocidentais, jaqueta, boné, sujo, coberto de poeira, quiçá uma película protetora, uma armadura. Talvez 60 anos, o que parece, provavelmente pouco mais do que 40.

Sem sorrisos. Aproxima-se, saúda. Fala baixo, lento, russo com pouca fluência. Perguntamos e aponta o caminho para Jelondi. Agradecemos dando-lhe o que pede, cigarros, pelos quais também agradece. Calmamente, se afasta. Os cães o seguem. Afastam-se no meio do nada. Para onde? Nenhum lugar. Estamos no meio de lugar nenhum.

Tresmalha-se no nada com seus cachorros, suas ovelhas, seu mundo tão, tão distante de mim, dos meus companheiros, de qualquer fronteira, de qualquer país.

A 4.200 metros, algumas pessoas sentem rapidamente os efeitos da altitude. Entendo que isso varia de organismo para organismo - uns mais, uns menos, uns hoje, uns amanhã, uns nunca. Iker e Kim sentem um pouco de dor de cabeça, além do desconforto intestinal que já vinha de antes. Estou ótimo. Um pouco enjoado, mas sentar atrás em um carro em estradas-terremoto costuma ter esse efeito em mim, mesmo à beira do mar.

Seguimos explorando o chamado vale de Shokh Dara, um dos principais da região oeste do Planalto de Pamir. O caminho tem pedras, alguns riachos formados por degelo, vegetação rasteira que parece esponja de aço e vento. Nada mais que isso. Nosso guia/motorista jurou que conhecia bem as redondezas, mostramos a ele no mapa o que queríamos ver. Mas a estrada é tão pouco usada e tão tênue que logo achamos estar perdidos. Não... está confirmado. Estamos perdidos. Não tem como não estarmos perdidos.

O motorista parece tenso.

Paramos mais uma vez, em um trecho de suave declive. Baixamos um pouco, estamos a 3.800 metros. Apesar do Sol, a temperatura está em 8 graus, sem contar o efeito do vento. Aqui, nem ovelhas, nem cães, nem aves. Pedras, vegetação de altitude e, a uns 300 metros de nós, o que parece ser uma casa feita de pedras, mas sem telhado, com um muro na frente, quase desabando. Às vezes o vento para. Nesse caso, o silêncio só posso ser o mesmo do de um planeta rochoso sem formas de vida. Marte, Mercúrio.

Surgem então mais extraterrestres. Um velho e sua mulher. O velho com a barba branca curta e a mesma pele do pastor que encontramos antes, dolorosamente queimada, vermelha enegrecida, um couro com rugas profundas como vales. Parece quase sem forças, se aguentando de pé porque não há outra opção para sobreviver. A mulher, mais jovem, olhos puxados e pele menos castigada, com as roupas coloridas das mulheres centro-asiáticas. Um sorriso lindo o dela, sincero, mas também extremamente cansado, beirando a exaustão. Suas rugas me dão a impressão de que ela deve ter uns 50 anos. Se a idade que lhe dou é uma ilusão causada pelo meio ambiente hostil e pelo cansaço, talvez até seja filha do velho. Por perto, nada de gado, nem de plantações (nas montanhas do Pamir não há agricultura, não há planta que aguente este chão, este clima).

De onde vieram essas pessoas? O que fazem aqui? Como sobrevivem? Tudo me pareceu meio inconcebível, meio irreal. O velho, caso tenha gado perdido pelo altiplano, teria energia para ir correndo atrás de reses perdidas? Falam russo muito mal, pouco posso entender. Não me atrevo a fazer perguntas. O motorista fala com eles e depois me confirma que viviam mesmo do gado, o gado invisível.

O motorista pede a eles que nos indique o caminho correto para Jelondi, como fizera antes ao encontrar o outro extraterrestre. É naquela direção, só seguir (apesar de não haver estrada visível). Agradecemos. E, antes de partirmos, eles nos convidam para o chá, querem que entremos na casa feita de pedras e sem teto. Agradecemos efusivamente, mas recusamos. O velho e a mulher sorriem de novo. Essas pessoas, tão pobres, provavelmente passando fome, quiseram dividir conosco o pouco que têm.

As neves nunca chegam a descongelar completamente por aqui, nem no verão. O que seria então este lugar no auge do inverno? O carro segue e estamos agora contra o Sol. O Sol é uma explosão branca, a altitude lhe dá mais força.

Cruzamos com um par de iaques. Nunca havia visto iaques, essa estranha criatura, um bovino com chifres aterrorizantes e um pelo longo e em várias camadas, conhecido por ser uma das criaturas mais adaptadas a esta desolação. Alguns são maiores do que o maior touro. Os dois não ligam para nós, pastam, apenas pastam.

O caminho quase invisível nos conduz à beira de um rio, embaixo de um forte abandonado. No Pamir há vários fortes e fortalezas, ruínas perdidas cuja história nem mesmo os locais conhecem direito. Mas todos lembram do comunismo. O legado soviético é evidente por causa de um único detalhe - eletricidade. Por toda parte há torres de transmissão. Lembro da obsessão soviética com eletrificação rural. Poucas coisas têm tanto sentido de civilização quando a luz elétrica.

Aqui, a cor do terreno mudou. Tudo no chão é marrom-alaranjado, cor de terra, até mesmo os arbustos rasteiros. Realmente, lembra Marte. Em algum lugar deste planeta vermelho fica Jelondi. Vamos em frente.


* * *

Mais cedo, passamos pelo povoado de Roshtkhala, no fundo do vale de Shokh Dara, não muito distante de nosso ponto de partida em Khorog e antes de entrarmos na estrada perdida pelas altas montanhas do Pamir.

Em Roshtkhala encontramos a primeira fortaleza do dia, pequena, com passado obscuro, no alto de uma colina. Mal conservada, hoje é apenas palco de brincadeiras das crianças. Ela dá nome ao lugar (Roshtkhala significa "fortaleza vermelha").

Encontramos uma família morando ao pé da fortaleza em uma casinha bem humilde. Se para os que vivem mais para o alto a agricultura não é uma opção viável, aqui o solo não é tão pobre e permite um plantar alguma coisa. Acompanhamos um pouco da rotina da família. Irmã mais velha, irmã mais nova e irmão pequeno, respectivamente uns 17, 12 e 10 anos, vasculham o solo para colher batatas. O irmãozinho usa uma pá, cava, as meninas enfiam as mãos na terra e colocam as batatas que encontram num balde.

Ao lado, o pai, com uma vaca e um arado. A vaca puxa o arado, abrindo sulcos na terra. Numa estrada ao lado da família, pastores passam tocando suas ovelhas. Como o gado levanta muita poeira, os pastores cobrem o rosto com panos, deixando apenas os olhos de fora. Passam por nós, olhos expressivos, curiosos. Colocam a mão direita no peito para nos saudar, como é costume por aqui.

As duas meninas da família das batatas, lindíssimas, poderiam ser modelos em outro mundo. Todos juntos, o pai, o garotinho e elas, posam para nossas fotos. Sorriem.

Não acho que lamentam viver na pobreza. Provavelmente não conhecem outra existência. Parecem felizes e tranquilos. E encontrá-los nos fez todos mais felizes, mais tranquilos.


* * *

Em Jelondi, passamos a noite em um balneário, um hotel com piscinas aquecidas, chuveiros, um restaurante e camas para passar a noite. Um estabelecimento para relaxar muito comum na antiga União Soviética, chamado em russo de sanatorium.

Em um lugar remoto como este, é um paraíso. Depois de horas perdidos no altiplano, no anoitecer encontramos a rodovia do Pamir, o principal referencial da região. O sanatorium estava à beira da estrada. Estacionamos o carro e puxamos os capuzes das jaquetas para enfrentar o vento cortante até a entrada do lugar - do lado de fora, parecia apenas uma casa bem grande, com um só andar.

Entrar naquele ambiente quente e úmido foi um grande prazer. Quartos coletivos nos esperavam. Tudo muito simples - cama, cobertor, travesseiro, lençóis limpos, um prato de feijão com macarrão bem quente, chá preto para acompanhar. Algum conforto. Enquanto meu peito se aquece mais tarde sob as cobertas, penso no primeiro pastor que encontramos, aquele a quem demos cigarros. No casal que encontramos depois, o velhinho de barba branca e a mulher, sorridentes, mas exauridos. Penso na família das batatas, nas meninas lindas. Aparições no meio do nada. Como estarão passando a noite?

Jelondi, 26/9, 21h

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Wednesday 14 February 2018

Nos Desertos, nas Montanhas (XXXI): Khorog

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25/9/2012

Fim do verão. São 11 horas, o Sol está forte, mas o ar é fresco. Uma suave brisa passa entre as árvores em direção ao vale, com a cidade, lá embaixo. Estou em um pequeno mirante nesta terra estranha de montanhas peladas.

Aqui no alto, afastado do resto da Khorog, vivem cerca de 2 mil espécies diferentes de plantas. É o jardim botânico da cidade. Tudo está colorido, há flores de todas as formas, um aroma doce no ar. As árvores, carregadas de frutas. Encontro uma macieira cheia de suculentos vermelhos, tentadores vermelhos. Foram maçãs assim que geraram o pecado original. Sinto um desejo louco de afundar meus dentes nessas tentações, mas não quero correr o risco de ser expulso, caso seja proibido.

A associação com o Éden me leva rapidamente para outro lugar, na minha cabeça. Shangri-Lá, a cidade tibetana oculta do livro Horizonte Perdido, de James Hilton (1933). O lugar mais secreto dentre os locais secretos. O mais mágico. Uma cidade em um vale em que o isolamento traz harmonia, felicidade, imortalidade aos nativos.

E na Shangri-Lá Khorog, o jardim botânico é um tesouro. Um local tranquilo, quieto, colorido, perfumado. Perfeito para horas de contemplação. Me sento e ouço o farfalhar das folhagens. Em apenas uma árvore, adiantada, anuncia-se a nova estação se aproximando. Está toda amarela.

Eu e meus companheiros de viagem cortamos o barulho das folhagens e da brisa com risadas. Rimos tirando fotos, com os olhos semifechados por causa do clarão do Sol, mostrando o resultado dos cliques uns aos outros, fechando a jaqueta para conter a entrada do frescor. Nossa, quanta foto bonita. Impossível tirar uma só.

A vista também é muito bonita. Khorog (veja o vídeo abaixo), a uma altitude de 2.123 metros, fica protegida pelos paredões de pedra que foram se apresentando durante toda a odisseia que foi a jornada desde Dushanbe. E, serpenteando por ela, um rio esmeralda, como espinha dorsal, e álamos, esticados, como golpes de pincel em uma tela. Seu parque principal, lá embaixo, perto do meu hotel, é uma assembleia de álamos. Tantos juntos, não lembro de ter visto antes.



Nos despedimos do alto paraíso para voltar a Khorog. Pegamos uma carona que tivemos sorte de encontrar. Os locais são simpáticos conosco. Doces, atenciosos. Muitos falam inglês. No carro, conhecemos um jovem que diz trabalhar para uma empresa de telefonia e uma moça que trabalha com ele. Os dois estavam vestidos como muitas pessoas que trabalham se vestem no Brasil - o homem, de gravata e roupa social, a mulher, com saia e blusa com um decote discreto. Falavam inglês excelente e nos levaram exatamente onde queríamos ir, a avenida principal da cidade, perto do parque dos álamos. Sorrisos e uma sensação de que eles estavam felizes de nos ver - de que estavam felizes de ver novamente visitantes por aqui.

Penso como é surreal que, há meros três meses, pessoas morreram baleadas em um confronto armado pelas ruas de Khorog. Nestas mesmas ruas tranquilas, habitadas por gente calma e hospitaleira. Tudo está na mais completa paz. Paz até demais. Fico pensando se estamos apenas arranhando a superfície.

Depois fica claro que sim. Há algo sinistro, além das amenidades.

Na cidade, finalmente, encontramos o motorista particular que vai nos levar pelo resto do Pamir. Um sujeito jovem, baixinho, fala rápida. Converso com ele, ele diz que é quirguiz e que sua família é do norte, de Murghab, para onde vamos. Fluente em russo, quirguiz e tajique, mas não fala uma palavra de inglês e fica aliviado em saber que eu falo algo de russo. Ficamos no meio-fio, em frente ao mercado, perto do parque, na avenida principal. Eu, Iker, Kim e ele, combinando os próximos passos. Sairemos no dia seguinte, bem cedo. Tudo certo.

Eis que surge um amigo do motorista.

O amigo o cumprimenta. Pergunta a ele, sério, em russo, quem somos. Apesar de eu estar do lado do motorista, não me saúda. Ao descobrir que somos estrangeiros, reage de uma forma muito estranha. Ele fala para o motorista, dando risadinhas, algo que não consigo entender - não acho que era russo. Em seguida, aparentemente em uma piada para o amigo, com a mão esquerda fazendo um gesto imitando um revólver, encosta o indicador na minha testa. Flexiona o polegar. Fala "bang". Dá uma risadinha final, olhando para o motorista, fala mais algo que não entendo. O motorista só olha e não fala nada. O observamos atravessar a rua e se afastar, em silêncio. Surgiu e desapareceu como se nunca tivesse existido, sem ter me dirigido a palavra.

O motorista não conseguiu explicar o que aquilo significava, ou eu não consegui entender a explicação dele. Mas parecia evidente que o homem havia dito que estávamos em risco. Onde? Por quê? Pura piada do homem? Muitas teorias, muitas respostas possíveis.

De noite, no hotel, eu, Kim e Iker voltamos a analisar os moradores de Khorog.

Kim havia voltado de comprar cigarros. "A atmosfera está pesada", disse. No mercado, encontrou olhares desconfiados em sua direção, risadas pelo canto das bocas. Desconhecidos, na rua, lhe pediram cigarros. Estavam bêbados. Perambulavam sem destino, cambaleantes, falando alto. Kim voltou o mais rápido que conseguiu para o hotel.

"Este lugar, tem algo muito errado por aqui. A tensão ainda não acabou", disse o singapurense, veterano de viagens por lugares machucados da Ásia.

Detalhes, impressões, sensações. Coisas para coçar a cabeça.


* * *

Este lugar deve muito ao Aga Khan. Trata-se de uma peculiaridade do Pamir.

No Brasil, poucos sequer ouviram falar no Aga Khan. Trata-se do líder de um dos inúmeros braços da religião muçulmana, o ismailismo Nizari. Trata-se de uma corrente do Islã xiita - ou seja, eles acreditam numa cadeia de sucessores místicos de Maomé, entre os quais o genro e primo do Profeta, Ali - para eles, o primeiro Imã (sucessor de Maomé). No entanto, diferentemente daqueles que compartilham da visão majoritária entre os xiitas, de que existem 12 imãs, os ismailitas nizari discordaram sobre quem deveria ser o sétimo Imã e, a partir daí, seguiram uma corrente separada de líderes espirituais. Dentro do ismailismo, existem por sua vez outras correntes. Os nizaris têm como líder o Aga Khan IV, o príncipe Shah Karim Al-Hussaini, o 49º da linha sucessória de Imãs dos ismailitas. Nascido na Suíça em 1936, milionário, ele é um empresário que se dedica a causas beneficentes e ao fortalecimento das instituições ismailitas em todo o mundo, para benefício dos seus estimados 15 milhões de seguidores.

Como o ismailismo passou a ser a religião predominante no Pamir é uma história interessante. Na Ásia Central inteira, a maioria dos muçulmanos segue a corrente sunita do Islã. Mas não aqui.

Durante a história da religião muçulmana, visões dominantes da fé foram empurrando outras para longe por meio de matanças e perseguições, da mesma forma que empurravam outras religiões. Os zoroastristas, por exemplo, que têm seu berço espiritual na Pérsia e no Afeganistão, foram praticamente eliminados nessas regiões (ainda restam muitos no Irã, mas nada comparado com o que eram no passado) e acabaram se fixando na Índia, onde encontraram um berço de tolerância e proliferaram (lá, são chamados de parsis). No caso dos ismailitas, missionários se tornaram especialmente influentes durante a dinastia persa samânida (a de Ismail Samani, nos séculos IX-X) a ponto de um dos emires ter, acredita-se, chegado a se converter. Há estudiosos inclusive que dizem que algumas das grandes mentes daquele tempo, como Avicena (980-1037) e Al-Biruni (973-1048), teriam sido ou ismailitas ou influenciados pelo ismailismo.

Posteriormente, a queda dos samânidas foi sucedida por impérios com o fanatismo sunita, como o dos gaznévidas (962-1189) e o dos seljúcidas (1034-1300), que perseguiram os ismailitas, forçando-os a se estabelecerem nos confins do império, em regiões isoladas, como o Pamir. Nessa época, um dos mais importantes intelectuais ismailitas, Nazir Khusraw (1004-1088), autor de um importante livro de viagens pelo mundo islâmico chamado Safarnama, se estabeleceu por aqui. Um líder local, que havia se convertido, ajudou em seus esforços proselitistas e firmou as montanhas como um bastião e um refúgio para os seguidores da vertente xiita. O fato de eles terem sobrevivido aos séculos com certeza se deve ao isolamento, mesmo durante os anos soviéticos.

O Aga Khan investiu milhões de dólares em projetos para beneficiar seus fiéis centro-asiáticos por meio de sua ONG, a Rede de Desenvolvimento Aga Khan (Aga Khan Development Network). Uma universidade e o parque do centro de Khorog, por exemplo, são atribuídos a ele. Não é de se estranhar que o Khan e o presidente tajique travem uma guerra silenciosa pelo poder em Gorno-Badakhstan. Mas, enquanto Rakhmon é quase esquecido em Khorog, o Aga Khan está em cada canto, nas conversas, com as pessoas mostrando gratidão pelos investimentos e carinho pelo líder toda vez que o mencionam.

Por outro lado, a presença do poder "oficial" de Dushanbe se dá principalmente pelos antipáticos soldados nas ruas e pelos igualmente antipáticos cartazes com a face do presidente, ainda assim menos numerosos do que vi no norte do país ou na capital. Algo imposto. Algo que os locais parecem querer esquecer.


* * *

De pijama, escovando os dentes, troco lamentos com Kim e Iker, todos falando sobre nossos probleminhas de saúde. Os dois enfrentam uma diarreia, especialmente o espanhol. Eu, por outro lado, finalmente me libertei de minha prisão de ventre, depois de tomar um laxativo. Parece ser impossível ter uma longa viagem com mochila e pouco dinheiro pela Ásia sem enfrentar, em algum momento, algum mal digestivo. Mas estou bem, tranquilo, empolgado, respirando o ar puro do paraíso, a caminho de outros paraísos no teto do mundo.

Khorog, 25/9, 22h17

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Sunday 11 February 2018

Nos Desertos, nas Montanhas (XXX): Khorog

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24/9/2012

A planície é chamada PAMIER, e atravessa-se ela cavalgando durante 12 dias seguidos, encontrando nada a não ser deserto sem vivendas ou qualquer coisa verde, de forma que os viajantes são obrigados a carregar consigo o que quer que venham a precisar. A região é tão elevada e fria que você não consegue ver quaisquer pássaros voando. E eu devo notar também que, por causa do grande frio, o fogo não brilha tanto, nem produz tanto calor quanto de costume, nem permite cozinhar a comida tão efetivamente."
- Travels of Marco Polo (século XIII)

No caminho.

O carro desce um vale profundo. Estamos em uma montanha de terra seca. Terra ocre, terra avermelhada. Alguns arbustos.

À direita, lá embaixo, bem longe, um pequeno rio vai ziguezagueando em direção a um maior, com uma água bem cinza.

Muita poeira lá fora. Sol forte. Nenhuma nuvem.

O grande rio cinza vai aos poucos se aproximando do nosso possante veículo 4x4, uma espécie de jipe.

Muitas, muitas curvas. Continuamos descendo devagar. Pulando com os buracos da estrada horrorosa.

O rádio toca música pop em alguma língua que nem sei qual é. O motorista segue quieto, concentrado.

Todos no carro estão sem abrir a boca. Se ouve apenas a música e pedras pequenas e grandes colidindo sem parar com a parte de baixo do carro.

Uma hora depois, chegamos lá embaixo. O grande rio toma sua posição à direta. Do meu lado.

Olho ao redor pela minha janela. Pelo para-brisa. Pela janela da esquerda.

O cenário é de arrepiar. Literalmente. Minha pele congela por alguns segundos. Além do rio, no lado direito, picos altíssimos de pura pedra, os mais altos que já vi. Também vejo o mesmo do lado esquerdo, beirando a estrada. E à frente, por onde vai o nosso caminho, mais montanhas.

Em vários momentos, me esforço para tentar enxergar, dentro do carro, o cume dos picos, à direita ou à esquerda, e não consigo. Vejo apenas paredes de pedra.

A estrada é realmente muito dura. Asfalto em pouquíssimos trechos. Na maior parte, cascalhos, rochas. Buracos imensos. Terra que vira poeira. Ao avançar, estamos criando uma nuvem de poeira cinza. Se estivesse chovendo, duvido que qualquer carro passasse por aqui.

Seguem-se as horas.

No caminho, mais, mais, mais montanhas altíssimas. A estrada continua beirando os pés dos picos e o rio.

De vez em quando, o caminho passa por pequenas planícies de pedregulhos que se abrem entre as paredes de pedra e a água. É onde algumas pessoas têm suas casinhas. Gente muito isolada, gente muito pobre. Gente desconhecida com olhos no carro como se o carro fosse um milagre. Vê-se apenas mulheres e crianças. Viram-se para ver o veículo chegar. E viram-se para respirar a poeira e ver o veículo passar. E misturam-se ao cinza. E viram cinza, poeira.

Após uma curva, o rio fica mais raso e amplo. Cria-se uma praia de cascalho e mais um espaço para um vilarejo. Vamos chegando e aparecem apenas crianças. Aparecem do nada, antes mesmo de podermos discernir qualquer casa. Trazem baldes com maçãs muito vermelhas. Trazem colares feitos com sementes de pistache. Risonhas, mas muito sujas, miseravelmente sujas. E com roupas coloridíssimas, como que para ajudar a diferenciá-las da poeira. As meninas com seus vestidos longos, alguns vermelhos, outros verdes. Vejo, depois, um outro grupo, só de meninos. Nos enxergam, estão perto das casas do vilarejo, e vêm correndo na nossa direção. Na corrida, suas sandálias quase escapam do pé. Não trazem nada para vender. Querem apenas nos ver. Sorriem.

Pouco depois, três vacas cismam em tomar o meio da estrada. Esta estrada é delas, não nossa. Devagar, vão-se as vacas, os meninos, as meninas. Vão-se maçãs e pistaches. Vai-se o vilarejo como se nunca tivesse existido. Talvez não tenha.

Voltam as montanhas, apenas as montanhas e o rio Panj, à direita (veja mais um vídeo com um panorama da região abaixo).



Do outro lado do rio, a terra proibida do mundo perdido. Meu celular está ligado, com um chip que comprei no Cazaquistão. De repente, algo surreal. Ele treme no meu bolso. Olho, é um torpedo, em inglês. Um torpedo? Quem me mandaria um torpedo? Abro para ler. É do serviço de roaming. Bem-vindo à Roshan. Fique com a Roshan para usufruir da maior rede de cobertura. Aproveite bem sua visita ao Afeganistão. Pela segunda vez nesta jornada desde Dushanbe, um longo arrepio. A confirmação de que, do outro lado do rio, está a terra do Talibã.

Do lado tajique ao afegão, por quilômetros e quilômetros de estrada que vamos vencendo, não encontramos nenhuma barreira, nenhuma cerca, nada. Só o rio. Diria que é fácil de atravessar, com uma pequena canoa ou mesmo a nado, mas não dá para saber a força da correnteza. Do outro lado, surgem lá e cá casinhas afegãs, isoladíssimas. Depois, um vilarejo. Depois, outro vilarejo. Não vejo neles, à distância, nenhuma alma viva. Parecem cidades fantasmas.

Ninguém parece patrulhar esta fronteira. Se há traficantes operando entre os dois países, eles não devem ter muita dificuldade de cruzar por aqui. Contudo, quem quer que venha para cá com o objetivo de traficar drogas ou armas entre um país ou outro deve enfrentar dois problemas sérios. Um é justamente o isolamento. Chegar a esta fronteira com uma carga não deve ser fácil. Mesmo as cidades afegãs mais povoadas que ficam perto daqui já são isoladas dentro do país pela geografia das montanhas. E o segundo problema é que, dizem, essa fronteira está salpicada de minas terrestres.

Todos gostariam de parar, tirar fotos, esticar as costas. Mas melhor não parar o carro.

Seguem-se as horas.

Lá pelas 22h, tudo escuro, estou conversando com Iker em espanhol - incompreensível para Kim, o motorista e mais um homem e um casal de pamiris que viajam conosco.

A conversa é interrompida. Nós dois nos calamos olhando para frente, vendo o que parece ser o céu negro profundo com estrelas, com um brilho puro que eu nunca havia visto. "Olhe o céu!", digo a Iker.

"Não é o céu", responde, deslumbrado. "É o Afeganistão!".

Estico a cabeça e vejo o céu, claro por causa da Lua crescente quase cheia, sem estrelas. Em baixo, as montanhas criam sombras sobre si mesmas, escondendo completamente as casas do outro lado do rio, menos a luz dentro delas. O firmamento que vimos era o mundo apagado com algumas estrelas caseiras. O universo se inverteu.

Nosso carro, com os faróis, se transformou em um brilhante cometa.

Por volta da 1h a Lua foge para o Brasil, desaparece do nosso céu. O motorista não aguenta mais e para o carro para urinar. Para, repentinamente, no meio da estrada, freia e desliga o motor, só deixando os faróis.

Até onde posso ver no breu, as montanhas ainda altíssimas nos cercam completamente. Somos um nada perto desses titãs. Se o carro é um cometa, somos poeira cósmica. E por falar em estrelas, elas, de verdade, finalmente aparecem. Vejo as Plêiades, vejo Alderbarã, tudo com irreal nitidez. Sinto uma alegria boba de reconhecer algo, as estrelas, nesta dimensão.

As estrelas, como setas, indicam o caminho. Mais estrada, mas falta pouco.


* * *

Pamir. O nome evoca isolamento a um ponto que as duas palavras, Pamir e isolamento, poderiam ser usadas como sinônimos. O local talvez seja de mais difícil acesso que as montanhas do Himalaia, que o próprio Tibete. E talvez seja ainda mais desconhecido - visto que tantos são atraídos ao Himalaia por causa do Everest, e tantos outros ao Tibete pela projeção internacional do Dalai Lama, pelo impacto do romance e do filme Sete Anos no Tibete, pela popularização do Budismo tibetano. Enquanto esses locais têm uma identidade com projeção no mundo atual, que se pode dizer do Pamir? No Ocidente, o local aportou no relato de Marco Polo. E até hoje esse relato permanece sendo a maior referência para ele.

Acho que ninguém sabe ao certo o que é o Pamir. Eu mesmo me incluo entre os ignorantes. Sempre imaginei que Pamir fosse o "Planalto de Pamir", uma região de altiplano. Mas essa é apenas uma parte dele. O Pamir é também um conjunto de altas montanhas entre China, Tajiquistão e Afeganistão.

Geograficamente, no Tajiquistão, há duas regiões distintas do Pamir. Mais a oeste, nas imediações de Khorog, há montanhas imensas e vales profundos onde vivem comunidades que, tradicionalmente, falam dialetos diferentes em cada vale. Culturas com restos de civilizações antiquíssimas, preservadas pelo isolamento. No leste do Pamir tajique, têm-se o altiplano em si, imortalizado pelo nome persa Bam-i-Dunya, "Teto do Mundo", passando dos 4 mil metros. Há quem chame a região de "montanhas Pamires", ou "Pamires". Prefiro chamá-lo de "o Pamir" como se diz "o Himalaia" ou "o Tibete". Pois são montanhas, são altiplano, são vales, são uma diversidade geográfica, cultural. São um micromundo.

Para complicar, o Pamir é dividido em vários "Pamires". Os mais conhecidos são o Pequeno e o Grande Pamir, ambos na parte oriental, incluindo partes do Tajiquistão e do Afeganistão. Se fala também de Pamir de Taghdumbash (na China), Pamir de Sarez (região da cidade tajique de Murghab), Pamir de Alichur (perto do vilarejo tajique do mesmo nome) e outros. Todos micromundos dentro do micromundo. Todos desconhecidos, todos, acenando ao intrépido viajante.

Até o nome vem carregado de mistério. Difícil descobrir que começou a chamar essa região de "Pamir". O nome aparentemente vem do persa antigo, com o significado de "pastagens onduladas", provavelmente associado ao panorama do altiplano. Por outro lado, os chineses se referem a esta região como "Montanhas das Cebolas" ou "Cordilheira das Cebolas", devido a cebolas selvagens supostamente encontradas no solo da região.

Para ir de encontro a este mundo, saímos de Dushanbe às 9h numa gloriosa manhã, tempo maravilhoso. Paramos para almoçar por volta das 13h no sul tajique, na cidade de Emomali Rakhmon, Kulob. Depois, só paramos para jantar, em Kala-i-Khumb, já em plenas montanhas do Pamir, às 19h. Aqui, me informaram que ainda teríamos umas sete horas de curvas. E nesse trecho final fizemos uma pausa apenas mais uma vez, para o motorista se aliviar.

Quando chegamos a Khorog são 2h30 da manhã. Estamos demolidos, exaustos. Faz frio, menos de dez graus. Cada osso do meu corpo solta um suspiro de alívio quando deito na cama da hospedagem providenciada por Rozik na casa do sogro dele. Uma cama quentinha, cheia de cobertores vermelhos.


* * *

Além do puro desgaste físico da estrada, a épica travessia foi pontilhada por encontros desagradáveis com policiais e militares. Nos povoados pelo caminho, vimos pelotões de homens com fuzis marchando, mesmo no meio da noite, no luar. E a cada dois ou três povoados, enfrentamos um bloqueio policial na estrada. Alguns dos policiais pediram nossos passaportes e, é claro, desconfiamos que a demora em liberar nosso carro se devia à ganância ao ver os "endinheirados" estrangeiros.

Apenas um bloqueio, porém, nos trouxe dor de cabeça de verdade.

Perto de Kulob, antes da descida para o rio Panj, paramos em uma cancela em um lugar ermo, empoeirado, no alto de uma montanha de uns 1.500 metros. No Sol e no vento, os soldados pediram todos os passaportes e com eles foram para uma pequena guarita ao lado da cancela. Depois de uma espera de uns 15 minutos, sem nenhuma justificativa, um deles ressurge e pede para que os turistas que não fossem do Tajiquistão o acompanhassem. Fui escolhido para ir sozinho e representar Kim e Iker por ser o único com algum conhecimento de russo.

Cordial, entrei na guarita e apertei as mãos dos três pequenos vermes vestidos com seus uniformes verdes. Me impressionei ao vê-los melhor, verificando quão jovens eram. O líder deles parecia ser especialmente diabólico. Loiro, magro. Parecia russo (a Rússia envia soldados para ajudar o Tajiquistão a patrulhar a região da fronteira com o Afeganistão). Cara de vilão de faroeste. E um cinto-relíquia, com a fivela com o símbolo da foice e do martelo.

Me veio com a história de que nem eu nem meus colegas tínhamos o "passe" especial para avançar rumo a Khorog. Todos nós, evidentemente, tínhamos conseguido previamente, além do visto tajique, um carimbo especial no passaporte autorizando nossa viagem a Gorno-Badakhstan, inclusive detalhando as cidades (entre elas, Khorog) onde tínhamos autorização de passar. O militar, porém, me disse que outro passe (que ele poderia fornecer em troca de dinheiro) era necessário por causa dos problemas recentes que haviam ocorrido no Pamir. Respondi, novamente com educação, que ninguém tinha conhecimento de nenhuma exigência especial, que nos haviam dito em Dushanbe que o passe era o carimbo especial no passaporte e que nada mais era necessário. O líder, não esperando minha reação, coçou o queixo e a cabeça. Eu já sabia o que iria acontecer.

O motorista de nossa 4x4 (que não falava inglês) interveio. Apareceu de surpresa na guarita. Na minha frente, falou longamente com o militar corrupto. Pelo pouco que pude entender da conversa em um russo bem rápido, o motorista tentou argumentar, mas o militar estava irredutível. Afastei-me. Fui para perto do carro chutando montes de poeira no chão, com as mãos no bolso. Iker e Kim, perdidos, me perguntam o que está acontecendo. Lhes digo. Respiram fundo, em silêncio.

Permaneci de pé do lado do carro por uma hora ou mais, até cansar e esboçar voltar para dentro do veículo. Nesse momento, o motorista, enfurecido, com os olhos vermelhos e prestes a explodir, sai da guarita com nossos passaportes. Entramos no carro e a cancela finalmente se abre.

Ficamos então sabendo os detalhes da negociação. O vilão de faroeste havia pedido inicialmente US$ 200, um absoluto disparate, uma fortuna para qualquer tajique. O motorista, um pamir que depende justamente do dinheiro dos turistas que viajam para Khorog e que ficou semanas sem faturar por causa dos problemas na região, manteve a paciência e foi negociando uma diminuição no preço do "passe".

Fomos liberados por cerca de US$ 15 (um montante também bastante considerável para os padrões locais). O motorista pagou do próprio bolso e não quis nos cobrar. Estava absolutamente enojado com os militares.

Vendo a cena, fiquei imaginando como o motorista deve enfrentar o mesmo périplo toda vez que transporta estrangeiros, a cada viagem infinita e dolorosa a Khorog e de Khorog a Dushanbe. Como já devia conhecer o vilão de faroeste de outras ocasiões, e como o vilão de faroeste não estava nem aí com ele, com seu ganha-pão, com a economia local, com os outros pamires que estavam no carro conosco. Total desrespeito, corrupção sólida, profunda. Caso os militares fossem russos, e pareciam ser, isso só aumentaria a dor dos locais, vítimas dessa intimidação cotidiana por parte dos colonizadores de décadas e décadas.

Fiquei pensando nisso e também no outro lado: como esses jovens militares devem ter um treinamento ridículo, um equipamento obsoleto e, principalmente, um soldo absolutamente irrisório, enquanto recebem a responsabilidade de patrulhar uma das fronteiras mais perigosas de toda a ex-União Soviética. Uma fronteira que pode gerar uma fortuna em contrabandos. Uma receita pode ser usada para cooptar esses garotos, fechando o ciclo de perdição.


* * *

Outro problema de saúde. Agora, estou com uma tremenda prisão de ventre. Há cinco dias meu intestino não funciona, embora eu me sinta ótimo e a urina esteja dourada e saudável. Em Khorog, vou ter que procurar um laxante.

Khorog, 25/9, 12h30

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