Wednesday 28 March 2018

Nos Desertos, nas Montanhas (XLIII): Bishkek

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8/10/2012

A Ásia Central e suas idiossincrasias.

Algumas delas: A ausência frequente de banheiros dentro das casas no interior, obrigando todos a enfrentar o frio lá fora no meio da noite. A presença constante e chamativa de dentes de ouro na boca dos simpáticos locais, muitas vezes substituindo todos os incisivos, os caninos, enfim, a maior parte da dentição. A ausência frequente de facas em restaurantes no Pamir. A presença constante, quase universal, de TVs mostrando videoclipes em restaurantes um pouco mais sofisticados (ou seja, aqueles que têm TVs), talvez um sinal de quão detestada é a TV aberta (pela presença dos políticos? Por só trazer programas velhos? Pelo sinal ser ruim?) ou de como todos amam a música pop (fascinação com o estilo de vida americano, carros, rappers, mulheres maravilhosas?). Todos esses temas dariam excelentes dissertações de mestrado, teses de doutorado, livros com vários volumes. Assim como os chapéus maravilhosos, as línguas, todas as cores e personalidades dos povos deste universo.

Mas se há uma idiossincrasia que representa um desafio formidável ao visitante na Ásia Central é a comida. Difícil morrer de amores pelo que comem tradicionalmente os quirguizes e cazaques, povos cujas culinárias se misturam. A vida nômade do passado gerou uma culinária entediante, muitas vezes sem gosto e às vezes, como vi inúmeras vezes no Pamir, praticamente intragável.

Os nômades das estepes não tinham lavouras, mas tinham cavalos, cabras, carneiros. E comiam carne. Muita carne. É assim até hoje. Nos restaurantes há uma predominância especialmente da carne de carneiro. Nos locais mais tradicionais, ou em festas, come-se também a de cavalo. A carne suína, proibida para os muçulmanos, é quase que completamente ausente.

Há muitas variedades de pratos para os não-vegetarianos, sendo que a mais palatável para o brasileiro é o shashlik, o espetinho de carne - que aliás é comido em toda a região, por uzbeques, turcomanos e tajiques também. Bem feito, é maravilhoso, assim como os Mantis, grandes raviolis cozidos, servidos em geral com creme de leite e uma pitada de endro em cima. Há o Beshbarmak (que significa "cinco dedos", numa referência à forma como deveria ser devorado), o prato mais festejado dos cazaques e quirguizes: carne de carneiro cozida e despejada sobre um ninho de talharim, como o de Osh. O talharim centro-asiático, o laghman, é comido como parte do beshbarmak ou em uma sopa com carne. São muito populares e fáceis de encontrar também as sopas russas, borsch, de beterraba - uma das poucas opções para os vegetarianos -, e salianka, com linguiça. Há o plov, o risoto uzbeque que se tornou um sucesso em toda a Ásia Central. Por fim, há as samsas, os pastéis triangulares semelhantes às samosas indianas, assados e com recheios diversos. Tudo muito simples.

Em alguns desses pratos, se nota a influência russa, como o uso do endro, ou chinesa, provável origem do laghman. Contudo, em se tratando de pratos realmente típicos cazaques e quirguizes, há alguns que realmente causam arrepios até nos mais aventureiros fãs da gastronomia. Hoje em dia, eles são vistos mais frequentemente em eventos especiais, como parte de um banquete. Falo, por exemplo, da cabeça de caneiro cozida (com os olhos, o cérebro e a língua). Ela deve ser fervida em um kazan, uma grande panela funda, e servida com algumas rodelas de cebola crua jogadas caoticamente por cima do crânio. Ao mais distinto convidado da festa, ou o mais velho membro da família, reserva-se a honra de comer um dos olhos. Nunca vi o prato por aqui, embora, em minha viagem, tenha encontrado cabeças de carneiro à venda no grande mercado de Almaty.

Hoje, em um restaurante de beira de estrada, enfrentando 10h de viagem de Arslanbob a Bishkek, relembrei mais duas possibilidades da culinária centro-asiática. Estávamos esfomeados, e o lugar estava às moscas (eram umas 15h, talvez todos já tivessem almoçado). Nos deram o menu. Eu e Iker escolhemos logo de cara shashlik. Não tinha mais. Escolhemos então outro prato, manti. Também não tinha mais. O que tinham eram apenas outras duas opções. Perguntei: oras, mas então para que nos dar menu? Bastava nos falar de cara o que tinham. Que piada. Apesar da fome, demos risadas.

A primeira opção disponível era um ensopado de batatas com pedaços de carne de carneiro, um prato chamado shorpo. Nada contra o shorpo. No Pamir, era geralmente isso ou laghman. E o shorpo do Pamir vinha sempre com carne de carneiro com muita gordura e muita batata. Enche a barriga e enjoa demais. Você sente toda a boca e a garganta cobertas de graxa. O gosto de água com gordura. Minha solução foi sempre colocar muita pimenta. Digo ao garçom, não, obrigado, estou evitando no momento. Quem sabe daqui a algumas semanas, quando o gosto de gordura tenha finalmente deixado minha boca, volto ao shorpo.

A segunda opção era pelmeni. Prato russo, é uma espécie de ravioli, mais pequeno que o manti, com recheio de (adivinhe) carne. Na Ásia Central inteira o pelmeni é servido numa sopa de caldo de (adivinhe) carne. Pedimos.

Nos trazem após longos dez minutos. Os raviolizinhos nos chegam boiando na sopa fervente com uma grossa camada de óleo na superfície. Pesco um, sopro, sopro mais, mas estou com fome demais e avanço no farol vermelho. Mordo. Queimo a língua e as gengivas. Dentro do pelmeni, gordura pura. Engulo. Aquela sensação familiar volta à garganta. O restaurante sequer tem uma coca-cola para acompanhar. De bebida, apenas uma opção, chá. Em duas variedades: verde ou preto. Ultimamente, tenho preferido tomar água quente.

Com Iker, passo aquele almoço tenebroso lembrando como sinto falta de gostos familiares, de boa pimenta e curry, principalmente. E lembrando da grata surpresa que foi aquele restaurante que descobrimos em Osh na noite em que chegamos. Excelente pimenta, excelente beshbarmak. Osh foi um oásis gastronômico, uma alegria maravilhosa.

Mas não tanto quanto Bishkek será. Comento com Iker: sim, lá é possível comer bem. Comer, aliás, todas as porcarias que os países de onde viemos nos dão. Pizza, hambúrguer. Fico salivando, num misto de fome e saudade. Meio envergonhado, afinal, pois parece que entrego a alma ao demônio toda vez que admito que quero um sanduíche com maionese. Meio envergonhado também porque eu adoraria me vangloriar de que comi os pratos da Ásia Central e descobri uma culinária misteriosa e divina, a comida de Shangri-lá! Fico pensando como alguns quirguizes devem achar tudo o que eu gosto de comer intragável. Da mesma forma que eu em relação aos pelmenis de gordura que eles aceitam sem pestanejar.

Enfim, terminamos aquele suplício de refeição. Me prometo devorar um x-hambúrguer ao chegar à capital quirguiz.


* * *

Bishkek, voltei, mas por pouco tempo. Desembarcamos na cidade no fim da tarde. Que felicidade reencontrar a capital! Já penso meu futuro. Em pouco tempo, voltarei para cá para viver por dois meses. Mas desta vez, será apenas uma noite. Em algumas horas, estarei a caminho de Kochkor, mais uma parada na viagem.

Bishkek nos recebeu com tempo e temperatura ótimos. Lembrei o já distante início desta aventura, com o Sol e o calor, quando eu ainda imaginava como seriam Khojand, o Pamir, Murghab.

O motorista que nos trouxe de Arslanbob nos deixou perto de onde iríamos passar a noite, um "hotel" no terceiro andar de um bloco de prédios soviéticos. Dificílimo de encontrar o tal "hotel". Tivemos que ligar duas vezes para o gerente para pedir orientação e ainda conversar com as pessoas que andavam nas redondezas - que ficaram surpresas ao saberem que ali funcionava um lugar para hospedar turistas. Uma senhora russa, com seu bebê no carrinho, foi categórica, espantadíssima, jurando que lá só havia apartamentos residenciais.

A nossa insistência deu resultado. Vencemos três lances de escadas mal iluminadas e sujas em um dos blocos e lá encontramos o lugar, que nada mais era do que o apartamento de um jovem que oferecia seus quartos para visitantes. Nada de especial no lugar, realmente parecia apenas um apartamento, mas cheio de mochileiros sem muito dinheiro. Provavelmente, algo totalmente ilegal, sem nenhum tipo de autorização especial das autoridades.

Foi melhor do que eu esperava. fiquei com Iker em um quarto espaçoso, o gerente falava inglês perfeito e recebi uma cama queen size. Na área comum, uma pequena sala com TV, cozinha coletiva e o acesso a dois outros quartos. Descarregamos as coisas, nos preparamos para voltar para rua para jantar e trocar dinheiro.

Perto da avenida Chuy e da praça Ala Too, dezenas de jovens bens vestidos, relaxados, namorando ou flertando, homens e mulheres. Comendo cheirosas samsas e shashliks. Minha saudade de comer porcarias acaba - no afã do fast food quirguiz. Não cumpro minha promessa a mim mesmo. Pego duas sansas, uma de queijo e uma de carne, e uma coca-cola. Estou satisfeitíssimo.

Bishkek, 8/10, 23h50

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Sunday 25 March 2018

Nos Desertos, Nas Montanhas (XLII): Arslanbob

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7/10/2012

Um cheiro doce ao redor. Agradável, um pouco azedo. Lembra cheiro de limão. Mas onde estou não há limoeiros. É um bosque de árvores altas, frondosas, mas bem separadas entre si. Tenho muito espaço para caminhar entre elas chutando as folhas secas, para zanzar entre um e outro um pedacinho de luz que penetra pelos galhos. Nesses lugares em que o Sol entra, ele pinta as folhas secas que cobrem cada milímetro do chão. Elas ficam douradas, ocres.

Caminho rumo a um grande aclive no bosque. Lá em cima, ao lado de uma cerca de arame farpado, uma senhora, com um longo vestido verde e um lenço vermelho cobrindo os cabelos, usa um pau para revirar as folhas no chão. Tem um grande saco surrado de tecido em uma das mãos. Procura nozes.

Nogueiras. Este é o maior bosque de nogueiras do mundo - nada menos que 11 mil hectares, ou 110 quilômetros quadrados. Parece piada: eu jamais havia visto sequer uma nogueira; agora, é como se tivesse encontrado todas elas juntas no mesmo lugar, dezenas, centenas, milhares.

É grandioso.

Estamos no fim da colheita. As árvores já estão meio nuas para o inverno. Mas ainda há os aldeões de Arslanbob ziguezagueado, cutucando o chão. Eles passam o dia aqui, assim, com sacos, enchendo-os com os frutos caídos que encontram. O fruto, para mim, que sempre foi o símbolo do Natal e um mistério em termos de origem. Nunca vindo de perto de onde vivo. Sempre lançando a imaginação para algum lugar distante. Sempre chegando até mim como um presente de um mundo além de minhas fronteiras.

A primeira surpresa: não ficam pendurado nas árvores como encontramos no supermercado, com a casca bege cheia de rugas duras. Fiquei um tempo olhando para cima, ofuscado pelos flashes de luz nos meus olhos, tentando encontrar exemplos pendurados. Nada. Então, piso em algo e quase torço o tornozelo esquerdo. Uma esfera verde, meio rachada. Retiro a casca verde devagar e lá está, a familiar casca enrugada. Fico bobo. Bobamente maravilhado. Quantas coisas tão simples como esta fazemos pela primeira vez quase aos 40 anos de idade?

Levanto os olhos. Perto de mim, surge do nada uma mulher que calculo ter minha idade. Vem com sua filhinha de uns doze anos, as duas com vestidos coloridos e os véus, azul a mãe, vermelho, a filha. A mulher leva um bebê nas costas. Ela está com uma mão dada à outra, por trás, na altura dos quadris. A criança senta sobre as mãos dadas da mãe, com as pernas colocadas entre os braços e as ancas da mulher. E, ao mesmo tempo, a mulher leva nas mãos dadas um saco com nozes. Mesmo ainda longe de estar cheio, deve ser um suplício carregá-lo e ao mesmo tempo usar as mãos de cadeira para o bebê. A menina ao lado é forte - carrega uma pesada sacola, bem cheia dos frutos, imensa para seu tamanho, quase da metade de sua altura. Calculo que, talvez, esteja levando metade de seu próprio peso em nozes. E não vejo traço de exaustão em seu rosto.

Encontramos um portão aberto na cerca, depois de termos subido todo o aclive. Atravesso. Uma clareira no bosque vem a seguir, à beira de um vale. Lá em baixo, um riozinho quase invisível, com pequenas cascatas. À frente, do outro lado do vale, a uns 1600 metros de altura, Arslanbob. Por toda a parte no panorama, altos e esguios álamos. Atrás da cidade, iluminadas em cheio pelo Sol da tarde, montanhas nevadas, altíssimas, chamadas de montanhas Babash-Ata.

Ruazinhas de terra, um ou outro Lada 4x4 enfrentando os buracos. A cidade tem todo um clima alpino e rural, com vacas e ovelhas livremente nas ruas. Além de colher o que sobra das nozes, os moradores parecem todos muito ocupados empilhando feno para o inverno que, dizem, por aqui é feroz.

Mais uma cidade de lendas. A mais conhecida diz que um discípulo do Profeta Maomé saiu pelo mundo a procura do paraíso e encontrou um lindo vale, o vale onde está a vila. Mas, ao chegar, havia um problema. O lugar estava vazio de árvores. Ele enviou então uma mensagem ao Profeta comunicando sua descoberta. Em resposta, Maomé lhe mandou um saco com sementes e frutas, pedindo que as espalhasse pelo vale. Entre elas, nozes. O discípulo subiu no topo das montanhas e as lançou ao vento; as sementes brotaram e se transformaram numa linda floresta.

Mas há uma outra lenda que contradiz essa. Essa segunda fala da chegada de Alexandre, o Grande, a Arslanbob. O grande conquistador, que viveu séculos antes de Maomé, teria descoberto aqui a noz e a levou consigo. De alguma forma, ela teria assim chegado à Europa, teria originado os bosques de nogueiras do Velho Continente. Essa seria a origem do nome que os russos dão para o fruto, noz grega, supostamente por causa de Alexandre.

Dada a associação lendária com o Profeta, muitos por aqui consideram o vale de Arslanbob sagrado.

Certamente ele tem algo de mágico. Em um mirante à beira da floresta, ficamos, eu e Iker, uns 20 minutos descansando. Adormeci com rapidez e profundamente por metade desse tempo, aquecido pelo Sol que me ofuscava quando lentamente fugia para trás das montanhas. Sonhei com o sul de Minas Gerais, com a serra da Mantiqueira, com o conforto das pousadas, com o calorzinho e o friozinho.

Acordei sem sobressaltos. Serenamente abri os olhos, me sentei. E olhei ao redor. Arslanbob, a neve no topo das montanhas, as nogueiras. Que longa e curta viagem em um abrir de olhos. Talvez os olhos nem tenham se fechado, nem se aberto.


* * *

No caminho saindo da floresta para a casa onde estávamos hospedados, o Sol rapidamente se foi. Acompanhamos no ocaso uma família de ovelhas pelas ruas de terra, todos seguindo pelo melhor roteiro para evitar os dois ou três carros que circulavam pela cidadezinha. A casa-pousada, como em Tamchy, era associada a uma agência de turismo comunitário, que incentiva as pessoas a abrirem suas próprias moradas para que turistas possam se hospedar. A ideia parece ter sido abraçada com gosto pelos quirguizes, de norte a sul, para ganhar uns trocados a mais e, claro, manter a tradição milenar da hospitalidade e ampliar horizontes por meio dos viajantes. Foi só no Quirguistão que encontrei a iniciativa realmente funcionando e muito bem.

Chegamos a Arslanbob vindos de Osh às 14h30 e, logo ao descer da van, fomos abordados por um senhor simpático, falando inglês melhor do que o meu e o do meu amigo espanhol. Era o chefe da agência local de turismo comunitário, um uzbeque com um nome inesquecível - Hyatt, como o da rede de hotéis. (Ele certamente estava predestinado a trabalhar com hospedagem de turistas!)

Hyatt nos levou à sua casa, onde funcionava seu escritório. Lá encontramos uma sala com mapas e fotos de hospedagens pelas paredes e tudo escrito em inglês. Fiquei impressionado com a organização. Ele nos mostrou um catálogo com uma lista de possíveis hospedagens locais, umas dez ou quinze. Escolhemos, ele ligou para a dona da casa e pouco depois um motorista apareceu com um carro para nos levar lá. Hyatt comentou que agora Arslanbob tem turismo comunitário o ano inteiro, inclusive no inverno, já que turistas vêm para cá para esquiar. A cidade não tem uma estação de esqui, mas alguns entusiastas mesmo assim sobem as montanhas e exploram caminhos selvagens para descer a toda velocidade.

A acomodação. Fantástica. Ficamos na casa de uma senhora. Sua filha e netos (nenhum homem à vista) estavam ocupadíssimos ensacando milhares de nozes que tinham coletado na floresta e colhendo batatas da plantação no quintal para o inverno. As nozes estavam em um tapete em frente à casa, nunca vi tantas em minha vida, milhares, espalhadas por uma área de pouco mais de um metro quadrado. Nos deram um quarto com uma cama de casal e outra cama, de solteiro, e quilos de edredons. Café da manhã e jantar incluídos e um preço excelente, 530 som (cerca de US$ 24).

A tarde havia sido com uma temperatura amena, uns 16, 15 graus. À medida que a noite foi chegando, juntamente com ela veio um frio assombroso, que tomou conta do quarto sem calefação (o que explicava os quilos de edredons). Minha mão direita foi particularmente afetada pelo ar gélido. Fiquei sem sentir meu dedo indicador até a comida chegar: uma tigela de sopa quentíssima com legumes diversos, arroz, pedacinhos de carne e pão para acompanhar. Aqueci-me com piadas e risadas, planejando com Iker os próximos passos do nosso caminho.

Uma hora depois, novamente dormi com rapidez e profundamente. Sob as pesadas cobertas, em um dos locais mais abençoados pela natureza que eu já vi.

Arslanbob, 8/10, 07h30

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Wednesday 21 March 2018

Nos Desertos, nas Montanhas (XLI): Osh

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Este texto faz referência a Um Brasileiro no Uzbequistão (2003); relembre aqui

Este texto foi escrito antes da morte do ditador uzbeque Islam Karimov, em setembro de 2016.

6/10/2012

Uma pequena viagem até o Uzbequistão.

Osh é muito perto da fronteira e da quarta cidade mais populosa do Uzbequistão, Andijan (só atrás em população de Tashkent, Samarkand e Namangan), onde eu nunca estive. Puxei novamente Iker para ir comigo.

Na verdade, Osh e Andijan são praticamente a mesma cidade, separadas pela divisa internacional. Uma van nos levou à fronteira. Em uma hora já tínhamos vencido todas as barreiras burocráticas e estávamos negociando o preço com o taxista do lado uzbeque para nos levar ao centro. Como já me aconteceu antes algumas vezes, ao atravessar a fronteira encontramos uma quantidade imensa de taxistas repentinamente com os olhos enormes ao nos ver, nos cercando, tentando nos convencer a não pensar muito no preço que estavam pedindo pela corrida. Por fim, fizemos negócio com um que nos pareceu mais confiável. Mais uns vinte minutos e estávamos no coração de Andijan.

Eis a cidade onde nasceu Babur, conquistador da Índia, apaixonado pela Sulaiman Too. Hoje, uma urbe de vastas avenidas. Bem maior que Kokand, também no Vale de Fergana uzbeque, onde estive anteriormente nesta mesma viagem.

Em 2005, Andijan ganhou fama internacional em um lugar no centro chamado Praça Babur. Em maio daquele ano, um grupo de 23 empresários de Andijan foi preso, acusado de simpatizar com o islã radical. A prisão levou a protestos pacíficos na Praça, protestos "quietos e muito bem organizados", disse um correspondente da BBC na época. As famílias dos presos diziam que eles eram inocentes. Talvez não fossem, mas a prisão de inocentes por radicalismo islâmico tem tudo a ver com o pensamento do ditador uzbeque Islam Karimov que, desde os anos 90, submete todo o Vale de Fergana a um torniquete de vigilância militar, temendo os mujahideens.

Na manhã de 13 de maio, um grupo de homens armados invade a prisão local, toma o prédio e liberta os 23 prisioneiros e outros detentos. Além disso, eles tomam o prédio da administração local de Andijan. Alguns soldados são mortos pelos invasores. Durante o dia, soldados são vistos ao redor da praça (em frente ao prédio) usando fuzis, enquanto que mais e mais pessoas chegam ao local para a continuação do protesto: ao microfone, falando à multidão de cerca de 10 mil pessoas, alguns criticam o governo Karimov pelos problemas econômicos. Alguns, gritam palavras de ordem contra o presidente, cantam canções de protesto.

Tamanha ousadia não poderia levar a outro desfecho no Uzbequistão de Karimov. Acredita-se que os soldados receberam a ordem de "eliminar" o grupo responsável pela tomada da prisão e do prédio do governo. Foram atirando. Oficialmente, morreram 187 pessoas, mas testemunhas e opositores falam que até 1,5 mil perderam a vida. Foi um momento marcante para Karimov, que, após o incidente descartou definitivamente qualquer esboço de abertura do regime, especialmente no Vale de Fergana, e se viu obrigado a enfrentar a pressão internacional para autorizar uma investigação independente dos fatos, o que nunca ocorreu. O massacre também afastou Karimov dos Estados Unidos, com quem vinha até então mantendo relações cordiais, já que os americanos não tiveram escolha a não ser condenar Tashkent pelo ocorrido ("traindo" a confiança do ditador uzbeque). Logo os americanos foram chutados de uma base aérea que Karimov os havia autorizado a usar no país para suporte da campanha militar dos EUA no Afeganistão.

Quero conhecer a Praça Babur, verificar o que existem de cicatrizes de tal evento tão importante para a história recente do Uzbequistão, e decido procurar o lugar - uma tarefa dificultada pelo fato de eu não ter um mapa da cidade. Entro com Iker em uma área verde ao lado de onde o táxi nos deixou. Com um portal bonito e chamativo, de cúpulas azuis, a área é tomada por envelhecidos brinquedos de um pequeno parque de diversões, fontes e estátuas, árvores, bancos onde casais de namorados conversam. Seria aqui a Praça Babur?

Uma garota de Andijan, com apenas o rosto branquíssimo de fora de sua vestimenta bem muçulmana, nos abordou e nos acompanhou, simpática, no passeio. Aliás, simpática demais: ficamos desconfiados de que pudesse ser algum tipo de espiã, o que não me estranharia. Falando inglês bem, aparentando interesse em praticar a língua, começou a fazer mil perguntas sobre nós, nossos nomes, o que estávamos fazendo em Andijan, o que estávamos fazendo no parque, o que queríamos saber sobre a cidade. Depois de responder algumas perguntas sem nos preocupar, começamos a responder de forma mais lacônica. Ela disse que o lugar onde nós estávamos se chamava Parque Navoi. Não, não estávamos no lugar certo. Pensei em perguntar a ela onde ficava a Praça Babur. Mas pensei duas vezes. Ela perguntaria o que estávamos indo fazer lá.

Passamos a ignorar a "espiã", que continuou nos seguindo. Era bastante incômodo. A cada minuto eu associava mais a presença daquela jovem com os fantasmas da cidade, com a paranoia de Karimov. Me contaminava com essa paranoia.

Não conseguimos encontrar a praça. Entramos e saímos do parque procurando placas e indicações. E nada. Saímos por um lado do parque e encontramos uma grande avenida, saímos do outro e encontrando outra. Estávamos intimidados, com a mulher nos seguindo bem de perto, e por isso não conseguimos perguntar para as poucas pessoas sentadas nos bancos onde ficava o lugar.

O que ficou claro: no parque, nenhuma referência em absoluto ao massacre, que certamente deve ter se feito sentir em todo o centro. Outra coisa que ficou clara: novamente, ao redor do parque, o processo de "embelezamento" da cidade. Como vi em Samarkand e Kokand: longos quarteirões estão tendo suas fachadas reconstruídas e já parecem irreais, como se tivessem sido transplantados da Europa ou dos EUA. Parecem não pertencer a Fergana. Em Kokand eu não esperava isso, aqui, sim. Não consigo imaginar um outro lugar em todo o país em que Karimov gostaria de ver o passado apagado e substituído por um presente lindo, limpo, irreal.

Mas ainda está longe de conseguir. Andijan tem motivos para cultivar um ódio oculto. A sensação de injustiça vai além do incidente de 2005. O papel da cidade (e do Vale de Fergana) é secundário e desmerecido na política do país nas últimas décadas, dominada por Karimov e os clãs políticos associados a ele, de Bukhara e Samarkand. O Vale de Fergana continua tomado por militares, você os vê por toda a parte, sendo um lembrete constante da desconfiança do poder central, do temor de que radicais islâmicos possam aparecer por aqui (como ocorreu no início dos anos 2000) ou de que um novo protesto, como o de 2005, possa ocorrer. Imagino que, para os locais, seja uma presença muito intimidadora. Como a da moça que nos seguiu, seguiu, seguiu até que saímos do parque, atravessando a avenida rumo a um grande mercado da cidade, do outro lado.

Praça Babur, eu ainda te encontro. Um dia.

* * *

A mesquita de sexta-feira. Um prédio com uma linda fachada, provavelmente reformada recentemente, mas um interior decepcionante: um pátio coberto com um telhado de metal pré-fabricado. Fomos convidados a acompanhar as orações de 13h do sábado. Os longos cânticos do museu ecoaram dentro de nós, gerando o contumaz silêncio reverente, um suspiro. Ao meu redor, dezenas e dezenas de homens com seus chapéus pretos chegavam, se ajoelhavam, encostavam a testa no chão.

Depois, do lado de fora da mesquita, concretizei meu objetivo ao vir a Andijan. Na mesquita, tive um encontro há muito planejado e muito comemorado. Encontrei um colega suíço do meu mestrado em Birmingham, que se formou junto comigo em agosto, imediatamente antes desta viagem. Ele estava fazendo um estágio em uma embaixada em Tashkent e vinha pela primeira vez ao Vale de Fergana justamente quando eu estaria em Osh. Era só atravessar a fronteira para vê-lo. Nos abraçamos. Tínhamos tanta coisa para analisar em nossa conversa que ficamos em silêncio por alguns segundos, pensando onde começar. Risadas se seguiram. "Onde vamos almoçar?" foi tudo o que conseguimos falar. Apenas com o chá servido, a conversa começou a fluir.

Que surreal foi encontrar meu amigo por aqui, ele, um representante de um mundo tão diferente do que tem me acompanhado a semanas. Ao mesmo tempo, como foi maravilhoso! O encontro me trouxe a sensação de que o tapete de retalhos, o patchwork da vida, é um só, não remendos desconexos, de cores, formas e texturas diferentes que não podem jamais ser colados ou costurados juntos. Difícil explicar isso. Viajar pela Ásia Central me afastou de todos meus amigos, de meus familiares, dos ambientes familiares do meu dia a dia. Encontrar meu amigo me reconectou com esse mundo de uma forma real. Ele estava lá. Durante minha viagem, a conexão entre o mundo de lá e de cá é permanente, mas apenas em minha cabeça. O tempo passa, e as lembranças vão ficando mais e mais irreais, até que chega um ponto em que você se pergunta se realmente foram reais. Assim, com meu amigo, as lembranças se provaram reais, e minha vida na Ásia e minha vida na Europa se provaram uma só. Só assim posso explicar a alegria que senti.

Fomos para um dos maiores mercado de Andijan, o Eski (que quer dizer antigo), ao lado da mesquita. Pedimos o chá e plov, o risoto típico uzbeque. Meu colega suíço veio acompanhado por uma moça alemã que trabalhava com ele. Haviam estado em outras partes do Uzbequistão e foi interessante ouvir a visão deles sobre as cidades. Dividimos a mesma percepção de que o Registan em Samarkand é lindo, mas insuportavelmente cheio de turistas, e que o melhor é explorar o país, ir até os locais menos conhecidos.

Depois do almoço, para fazer a digestão, caminhamos até o mercado Yangi (que quer dizer novo). Na área externa, o suíço teve a brilhante ideia de comprar e dividir com todos um doce e suculento melão, do tipo gigante que abençoa a Ásia Central. Eu, Iker, meu colega e a alemã demos um espetáculo, tentando fatiar o melão no meio do mercado com uma faca emprestada por algum dos vendedores, procurando apoio sem uma mesa para encostar a fruta e poder cortá-la melhor, parando para tirar fotos com as mãos completamente meladas. Logo, os frequentadores do mercado e os próprios vendedores tentaram nos ajudar e, ao mesmo tempo, pediram para tirar fotos de nós. Cansamos de responder as perguntas tradicionais vindas de todos que se acercavam: De onde vocês vêm, para onde vocês vão? E no caso particular meu e de Iker, depois de revelarmos nossas nacionalidades, enfrentamos as também inevitáveis perguntas sobre futebol e ouvimos infinitos elogios a Ronaldo, Pelé e Casillas. Viramos um atração turística imperdível... para os não turistas. A diferença da curiosidade dos locais era clara em relação a Bukhara ou Samarkand. Com menos turistas em Andijan, a curiosidade pareceu genuína, não uma ponte para tentar vender suvenires para nós.

Iker ficou frustrado. Eu lhe disse que o Vale de Fergana uzbeque era um bom lugar para comprar seda, a seda que dá nome à Rota da Seda. Na minha cabeça, evidentemente, estava a maravilhosa fábrica de seda artesanal que visitei em Margilan em 2003, e Margilan é perto de Andijan. Contudo o que encontramos no Eski e no Yangi foram apenas tecidos misturando seda com outras fibras, alguns em formato de grandes bobinas, outros já cortados e costurados pelos locais na forma de vestidos femininos. Os tecidos eram produto de máquinas, não de artesãos, e tinha estampas copiadas em série. Onde estavam os lindos lenços púrpuras de Margilan? Onde estava a tradição desta terra? A tradição foi engolida pela "nova Rota da Seda", o projeto do governo chinês para dominação de rotas comerciais entre Pequim e a Europa. No Yangi, como na rua 25 de Março em São Paulo, a China é a origem de quase tudo. Senti uma grande tristeza com a marcha inexorável do comércio global. A Ásia Central é parte importante dos planos chineses de expansão comercial, como ficou claro na construção do grande túnel que vi no norte do Tajiquistão.

Essa expansão tem um preço, um preço que vai se acumulando com as décadas e também não é exclusivamente culpa do chineses. A partir do século XVIII os russos já traziam seus produtos para vender aqui, ameaçando os artesões locais, inundando esta terra com mercadorias baratas e de baixa qualidade. Processo semelhante ocorreu em todo o restante do mundo.

Temo pelos famosos artesãos da Rota da Seda. O que restará da manifestação cultural única que eles representam daqui a 10, 20 anos? O que acontecerá se não forem protegidos, incentivados?


* * *

Me despeço com pesar do meu colega de universidade. Nem sei quando, ou mesmo se, o verei de novo. Apanho um táxi com Iker e atravessamos campos de algodão para chegar novamente à fronteira quirguiz. O algodão, o principal traço da personalidade econômica do Vale de Fergana no lado uzbeque, se segue a uma grande plantação de maçãs e a um campo de girassóis, lindos sob a luz do anoitecer. A fronteira surgiu de repente, logo a seguir. E, com as fronteiras, sempre vem tensão.

Guardas uzbeques simpáticos e cordiais (não tive problemas com eles em nenhum lugar desta viagem). Mas no lado quirguiz, para variar... A fila para carimbar o passaporte era longa. Para relaxar, eu e Iker ficamos, em espanhol, lembrando de piadas e dando risadas.

Como na saída do Tajiquistão, novamente o guarda encarregado de carimbar os passaportes era gordinho e de óculos. Cheguei até a pensar que se tratava do mesmo, mas acho difícil que, se fosse, não tivesse falado algo para mim (como por exemplo: "ligou para meu amigo para ele transportar você até Bishkek?"). De qualquer forma, igualmente, como seu irmão gêmeo de dias atrás, este estava com péssimo humor e com cara de pouquíssimos amigos. Ao nos ver Iker na fila dando risadas de uma de minhas piadas, pediu silêncio. Levantou a voz e ordenou de forma extremamente ríspida que o espanhol ficasse atrás de uma linha marcada no chão, longe de mim.

Fiquei me perguntando se ele considerava o ato de rir algo subversivo. Quem sabe as gargalhadas pudessem iniciar uma revolta dos uzbeques na fila contra os guardas quirguizes de fronteira? Será que ele simplesmente ficou com raiva das risadas, pensando que nós estávamos rindo dele? Ou será que sua reação foi apenas uma forma de mostrar autoridade, motivada pela raiva de nos ver felizes enquanto ele, e os outros guardas, trabalham horas e horas por um salário irrisório tendo que lidar com filas infinitas?

Ficamos com medo de que rejeitasse nossa entrada no Quirguistão. Meu visto múltiplo para o Uzbequistão expiraria em no dia seguinte; na hipótese de sermos impedidos de entrar, teríamos que voltar no dia seguinte esperando que um guarda quirguiz de mais bom humor nos atendesse. Mas, comigo, foi tudo tranquilo. O guarda apenas perguntou se eu tinha um visto quirguiz (eu tinha, mas na verdade não precisava, já que tenho passaporte espanhol, e cidadãos europeus não precisam de visto para visitar o Quirguistão a turismo). Com Iker, o carimbo foi antecedido por uma bronca, uma longa bronca, em russo. Nem eu entendi tudo, e Iker, claro, sem nenhum conhecimento da língua, apenas ficou sério e concordou, com a cabeça, com tudo o que lhe era dito.

Amanhã, adeus Osh. E começa minha sétima semana de viagem.

Osh, 7/10, 8h58

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Sunday 18 March 2018

Nos Desertos, nas Montanhas (XL): Osh

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5/10/2012

Kim partiu ao amanhecer. Nos despedimos de novo rapidamente. Meu amigo fotógrafo de Singapura foi convidado a participar de um evento em Tashkent e iria agora enfrentar longas horas de van de Andijan (perto de Osh, mas do lado uzbeque da fronteira) até a capital uzbeque. Nós, eu e Iker, continuaríamos dormindo por mais uma hora antes de visitarmos outra cidade perto de Osh, Özgön. Iker ainda me acompanhará nos próximos dias em uma volta pelo Quirguistão até a pequena cidade de Kochkor, e lá por fim seguirá seu caminho separadamente de mim até Almaty, de onde pegará o avião para a Espanha.

Özgön, ou Uzgen, ficou tragicamente conhecida como um dos palcos, juntamente com Osh, dos conflitos étnicos de 1990. Fica a cerca de 1h de van (sem trânsito) de Osh. De acordo com um balanço de 2011, nada menos que 90,7% da população de Özgön é uzbeque. Porém, não espero ver muitos chapéus uzbeques na rua. É a mesma coisa que em Osh. Os massacres ensinaram uma lição difícil de esquecer. Qualquer manifestação de orgulho uzbeque é um risco.

Foi uma pequena odisseia sair de Osh. De fato, matamos de vez a saudade de um dos principais "prazeres" das cidades grandes, o trânsito. Para começar, o ponto inicial da van para Özgön ficava perto do mercado de Osh, onde, naturalmente, a rua é um caos. Ônibus, vans, carros, bicicletas, pedestres, vendedores, todos juntos, estressados e barulhentos.

Em segundo lugar, em um incidente típico dos ex-países soviéticos da Ásia Central, tivemos que esperar 20 minutos em um cruzamento que foi fechado pela polícia para a passagem de uma autoridade. Era o presidente? O governador local? Ninguém sabe. O transporte, para esses sujeitos, parece sinal de status. Parece que, quando mais causar transtornos, quanto mais parar a cidade, mais seus egos ficam inchados. Melhor seria mantê-los em suas jaulas de ouro, e, nisso, neste desprezo às autoridades corruptas, vaidosas e sem respeito pela coletividade, me uno a todos os meus amigos de Uzbequistão, Tajiquistão, Cazaquistão e Quirguistão.

Assim, um atraso foi inevitável. Umas 2h de viagem no total, chegamos ao meio-dia. Logo ficou claro como sair de Osh foi uma boa ideia: meu novo destino me recebeu bem. Pouco trânsito. Gente indo e vindo com sorrisos no rosto, olhando para mim com curiosidade sincera. Mesmo o tempo estava bom. Estava nublado e meio chuvoso! Foi uma dádiva após tantos e tantos dias seguidos de Sol. Um descanso para a pele castigada pelo Pamir.

Iker não havia planejado vir a Özgön, mas eu insisti para que viesse. Meu argumento foi que, aqui, há outra joia arquitetônica, como tantas na Ásia Central.

Trata-se um conjunto de três mausoléus e um minarete da época dos karakhanidas, que dominaram esta região entre os séculos X e XIII e fizeram de Özgön uma de suas capitais. Um povo perdido na terra dos povos esquecidos, engolidos pelas areias do tempo. Mas nem tão perdido, nem tão esquecido em Özgön, onde os moradores têm a seu lado, só ao levantar a cabeça, um constante lembrete de sua glórias. Novamente, depois de rastrear as pegadas dos karakhanidas no sul do Cazaquistão, as encontro por aqui, no sul do Quirguistão. Mais um sinal de como estes países estão entrelaçados, como suas histórias são as mesmas, ecoam-se.

Os mausoléus, do século XII, lembram o celestial mausoléu de Aisha Bibi, em Taraz. Mesmo se eu não soubesse a época em que os monumentos de Özgön foram construídos, seria capaz de adivinhar que eles são karakhanidas justamente por essa semelhança. Como lá, aqui os mausoléus e o minarete são todos cobertos com tijolos com ricos padrões decorativos, mas sem azulejos coloridos. Nessa época em que os prédios foram construídos ainda não existia a técnica usada depois para colorir os gloriosos prédios de Bukhara e Samarkand.

A falta de cor, o uso apenas de terracota na fachada, acrescenta com sua modéstia uma beleza particular aos três mausoléus, que, de qualquer forma, não têm igual em nenhum outro lugar. Podem não chamar tanto a atenção quando o mausoléu de Aisha Bibi e seus mais de 50 tipos diferentes de padrões geométricos na fachada. Contudo, aqui, encontrei padrões que sugerem figuras de plantas. Não havia visto nada assim: inscrições em caligrafia cúfica misturadas com ramos vegetais, lembrando botões de rosas e outras flores. Além disso, são tão incomuns por serem três, juntos, um ao lado do outro, colados, enfileirados.

Juntos, mas construídos em anos diferentes e com fachadas diferentes uma do outra. O mausoléu do centro é o mais importante, e teria guardado os restos de um dos reis do khanato karakhanida, Nasr Ibn Ali. Parte de sua fachada está pelada; no seu interior, fiquei me perguntando onde estava sua tumba, não a encontrei. E o péssimo estado de conservação de partes da câmara interna me deixou triste. Por outro lado, as fachadas na entrada dos outros dois mausoléus roubaram o show. Foto após foto, tentei capturar a riqueza dos detalhes, como em Aisha Bibi. Uma tarefa difícil. Nenhuma imagem fará jus ao que se vê com os próprios olhos.

Encontrei, então, em Özgön uma irmã histórica de Taraz. Passeando rapidamente pelo mercado, ficou claro também o elo com outro local que visitei nesta viagem, Chorku. Como a vila tajique, Özgön exibe um intenso conservadorismo islâmico, com sinais difíceis de se ver em cidades grandes da Ásia Central. Cruzei com muitas mulheres com o véu completo, cobrindo tudo, menos os olhos. Desta vez, pelo menos, diferentemente do que ocorreu em Isfara, elas não simplesmente desviaram do meu caminho, como se eu tivesse alguma doença. Nem pareceram depender dos homens para transporte. Mesmo assim, vê-las vestindo a vestimenta completa destoa do que costuma se ver nos países da ex-URSS, onde há uma herança de secularismo. Iker, especialmente, pareceu impressionado em encontrar mulheres seguindo uma vertente tão conservadora do Islã nesta região. Ele nunca havia visitado o Vale de Fergana, uma região conhecida por seu conservadorismo, nem muito menos visitado Chorku, onde encontrei isso com maior peso.

No almoço, deliciosos shawarmas (churrasco grego) com muita maionese perto do mercado em um restaurante "internacionalmente conhecido" de Özgön: o "Burger King". O espertinho do dono do estabelecimento se apropriou sem nenhum pudor do logotipo da rede americana. Por outro lado, nada de oferecer whoppers - no menu, sim, hambúrgueres, x-búrgueres e as opções tradicionais de fast food centro-asiáticas, como o shawarma.

A comida não foi nada de excepcional. Porém, agora eu posso falar, sem mentir, que comi em um Burger King no coração do longínquo Vale de Fergana, onde a legítima cadeia de restaurantes está longe de ter filiais. Só é melhor omitir que essa aventura me trouxe uma diarreia.

Antes de voltar para Osh, compro no mercado a cola para finalmente colar meu passaporte.

Osh, 6/10, 7h35

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Wednesday 14 March 2018

Nos Desertos, nas Montanhas (XXXIX): Osh

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4/10/2012

Babur. É um nome pouco conhecido no Ocidente. Foi tataraneto de Tamerlão e o fundador da dinastia Mughal na Índia. É a dinastia que nos deu o Taj Mahal, a que dominou o subcontinente a partir do século XVI até ser sucedida pelos britânicos no século XIX.

Babur sonhava em construir um império como o do ilustre ancestral. Nascido no Andijan, cidade no lado uzbeque do Vale de Fergana, ele partiu para a dominação da Índia e parou no caminho na milenar Osh, que fica ao lado de sua cidade natal. Viu a magnífica montanha que brota do coração da cidade, a segunda maior do que viria a ser o Quirguistão. Se emocionou com tamanha beleza. E construiu no alto dela, em 1497, uma pequena mesquita para suas preces.

Hoje, descansados, relaxados, eu, Iker e Kim enfrentamos a íngreme estrada até a Dom Babura, ou casa de Babur, como é conhecido em russo o pequeno templo. Lá em cima, encontramos a pequena edificação, reconstruída várias vezes ao longo dos tempos. Um lugar pequeno, simples. No chão de pedra polidíssima, o zelador - um senhor de meia idade, chapéu ak kalpak e longa barba escura - nos indica os buracos onde o Profeta Maomé, miticamente, teria colocado os joelhos e os cotovelos durante uma oração. No pequeno templo, encontramos paz e algum silêncio em meio a tantos turistas chineses e do próprio Quirguistão.

Trono de Salomão. Montanha de Solimão, ou Sulaiman Too em quirguiz (a confusão entre Solimão, o profeta islâmico, e Salomão deriva dos nomes dados àquele que se acredita ser a mesma pessoa tanto no Corão quanto na Bíblia). Esses são os nomes dados ao monte de Osh. Este lugar santo em uma cidade de 3 mil anos como Osh se tornou o único lugar de todo o Quirguistão a figurar na lista de patrimônios da humanidade da Unesco. Explicando a distinção, o órgão de educação e cultura da ONU diz que Sulaiman Too tem sido, há mais de 1.500 anos, um "farol para viajantes, reverenciada como uma montanha sagrada." Nela existem nada menos que 101 locais com pinturas rupestres representando humanos, animais e formas geométricas. Há 17 locais de adoração religiosa, entre os que continuam em uso e os que já não recebem fiéis. Eles estão espalhados pela montanha e são conectados por trilhas. "Acredita-se que os locais de culto trazem cura para a infertilidade, dores de cabeça e dores nas costas, além de abençoarem o visitante com a longevidade", diz a Unesco.

A montanha de aproximadamente 1.110 metros de altura é de fato impressionante. Projeta-se como se fosse inteira um único monumento, isolada, no coração da cidade. O Vale de Fergana, em si, não tem montanhas (elas estão todas ao redor). Assim, a Sulaiman Too, brotando da terra onde não deveria estar, parece ter sido obra de um capricho divino, como se Deus quisesse que ela se tornasse mesmo um centro de adorações. É evidente que, no futuro, quando entretermos lembranças da cidade quirguiz, eu e meus amigos poderemos até esquecer do nome do monte, mas ele para sempre será a tradução da cidade em nossas mentes. Não o povo, não as ruas, não o trânsito. O monte. Osh é o monte, o monte com o pequenino templo no alto, o monte de pedra pura, grandioso, santo.

Não só dentro da Dom Babura, por toda a parte, impressiona como a rocha é polida, lisa, como se tivesse sido esfregada, depois encerada e limpa com uma flanela. Como se tivesse sido esfregada, encerada e limpa com uma flanela todos os dias desde que surgiu na Terra. Tivemos que tomar muito cuidado para não escorregar ao caminhar pelo monolito.

Com sua conhecida indiferença para a religião, os soviéticos evidentemente não deram crédito ou respeito aos relatos locais sobre a santidade da Montanha de Solimão. Uma prova chocante disso foi o que fizeram em uma de suas faces. Com explosivos, ampliaram uma caverna, instalaram estruturas de aço e concreto e lá abrigaram um museu.

Foi uma obra futurista quando foi inaugurada, em 1978. Hoje, o Museu Histórico-Cultural é uma bizarra relíquia arquitetônica da URSS - suas linhas arrojadas sugerindo força e modernidade, sua simplicidade brutal. Uma aberração enfiada na beleza do monte. Um lembrete da dimensão que tomou a utopia soviética, destruindo, reconstruindo, moldando o homem e todo seu ambiente, tudo que lhe diz respeito, recriando o mundo. O museu é uma das provas mais berrantes dessa tentativa soviética de reconstruir o mundo e tudo associado a ele, incluindo a cultura.

O museu foi inaugurado como parte das comemorações dos (supostos) 3 mil anos de Osh. Verdade? Seria uma cidade tão antiga? Ninguém sabe ao certo.

Uma lenda improvável é que a cidade tenha sido inaugurada por Solimão, o que explicaria bem o nome de sua montanha. Aliás, explicaria também o nome da cidade, que é bem incomum. "Osh" não significa nada nem em uzbeque nem em quirguiz, bem diferente de outras cidades, onde há palavras que têm significados claros para os locais (por exemplo: Karakul vem de "kara", negro, e "kul" (ou "kol"), lago: assim, é "Lago Negro" em túrquico, uma das línguas que ajudou a formar tanto o uzbeque como o quirguiz). Para explicar o nome, conta-se que Solimão, que vinha em seu cavalo acompanhado de outros cavaleiros, avançava pela região quando viu Sulaiman Too. Então, impressionado com a montanha, ordenou fazendo esse som, "OSH!", que todos parassem.

Mais provável é outra história, de que a cidade teria sido outra obra de Alexandre, o Grande. Ainda mais provável é que nenhuma das duas lendas sejam verdade, e Osh tenha sido um assentamento de tribos locais em sua origem. Sabe-se que no século VIII a cidade já era conhecida por sua produção da seda e por sua posição estratégica, sendo um último ponto de parada e comprar mantimentos antes da travessia das montanhas para a China e a cidade de Kashgar, a leste, ou do Pamir, ao sul. No século 13, estava sob controle dos Khoresmanshahs, os mesmos governantes de Otyrar, aqueles que irritaram Genghis khan, e por isso teria sofrido a fúria dos mongóis. Entretanto, diferentemente de outras cidades destruídas pelo império invasor, ela se recuperou e até a chegada dos russos era parte integrante do Khanato de Kokand.

Verdade ou não, a população local sustenta a antiguidade da cidade com orgulho: alguns dizem que é ainda mais velha que Roma. Quando a lenda se torna a realidade... publique-se a lenda. O orgulho de sua antiguidade parece ser um exercício cotidiano, no Quirguistão e em outros países da ex-URSS na Ásia Central, para que eles próprios se convençam de sua legitimidade histórica.


* * *

O grade mercado de Osh não é muito longe da Sulaiman Too. Não fosse o monte, ele provavelmente seria a grande atração da cidade. Uma orgia de cores e cheiros, maior (em número de barracas e vendedores) do que mercados em cidades muito maiores da Ásia Central.

Etnias, vozes, línguas, chapéus quirguizes, chapéus uzbeques, pessoas de longe, de perto, estrangeiros, frutas, carnes, tecidos. Empolgante como os mercados de Shakhrisabz e o de Margilan. Uma labiríntica arena para o esporte regional da barganha. Foi aqui que finalmente, consegui completar minha coleção de chapéus do Turquestão: comprei meu ak kalpak de uma moça em uma barraca com altas muralhas de chapéus. Meu ak kalpak, de feltro branco, poderia ser descrito facilmente como uma cartola - é alto, chamativo. Lindos seus bordados negros, motivos misteriosos em curvas, brincando de simetria, um a exata copia do outro, um à esquerda, outro à direita da cabeça.

A moça jovem tem talvez 18 anos, sorriso lindo, dentes perfeitos e olhos pouco puxados. Te cativa pela simpatia, excelente vendedora. Contou-me detalhes fascinantes sobre o chapéu, vendido com diferentes padrões decorativos e composições de branco e preto. Explicou: o ak kalpak em que a parte de baixo das abas é preta é geralmente usado por homens mais velhos, enquanto que os jovens usam com a aba branca, como o meu. A cor das figuras decorativas, disse, não tem importância - há até douradas e prateadas, além de pretas, é claro, o mais comum. O ak kalpak é só usado pelos homens, assim como os principais chapéus étnicos da Ásia Central. Mas há também um chapéu quirguiz para as mulheres. E ela me mostrou. Alcançou a prateleira atrás da tenda uma peça imensa, cor de prata. Parecia uma pequena melancia que se encaixa na vertical na cabeça, e deve ser usada juntamente com um véu que desce do chapéu e vai por baixo do queixo da portadora. A vendedora entendeu minha risada ao ver semelhante trambolho e ressaltou: "Só usamos em ocasiões especiais, como casamentos".

Com meu novo companheiro na cabeça, viramos, eu e Iker (e o ak kalpak que também comprou, nesse caso de aba preta), atrações na cidade. Claro que todos, à distância, percebiam que éramos estrangeiros. Mas estrangeiros usando um dos símbolos do Quirguistão? Fomos parados nada menos que seis vezes por locais, que, num esforço comovente para falar inglês, nos disseram que estávamos "elegantes". Achei engraçado.

Mas não por muito tempo. Conversando com Iker, refletimos sobre o porquê de tanto orgulho dos locais em nos ver usando os chapéus. Concluí que estávamos, na verdade, não apenas usando o chapéu, mas adotando um certo discurso com o gesto. Um discurso de divisão social, em que os quirguizes, que tradicionalmente não eram maioria aqui, se impõem sobre os uzbeques, esses sim a maioria tradicional no Vale de Fergana, onde fica Osh.

Da violência que foi a divisão de fronteiras à soviética, Osh é talvez uma das maiores feridas que surgiram, uma ferida causada pelo fratricídio de povos que eram vizinhos e viviam em harmonia, até serem separados à força por Stálin. Em duas ocasiões nas últimas décadas, a região onde fica Osh foi o palco de conflitos étnicos sérios, que levaram à morte de centenas de pessoas. A raiz parece ter sido a mesma nos dois casos - nacionalistas quirguizes, alimentados pelo desemprego e pelo sentimento de inferioridade, enfrentando membros da comunidade uzbeque, vistos como tendo regalias econômicas em um países que não é deles.

O primeiro conflito ocorreu em 1990. A explicação para o início da violência na época era a discussão sobre o destino de uma antiga fazenda coletiva soviética, então nas mãos dos uzbeques, mas cobiçada pelos quirguizes pobres, muitos vindos de miseráveis povoados nas redondezas. Cifras oficiais colocam o número de mortos na casa dos 600, enquanto alguns dizem que eles chegaram a mil.

Em 2010, um Quirguistão já quase 20 anos distante da União Soviética, viu o fantasma ressurgir durante a queda do segundo presidente da história do país, Kurmanbek Bakiev, então alvo de uma revolução. A base de apoio de Bakiev eram os nacionalistas da região de Osh. Embora ele sempre tenha alegado que não esteve por trás do banho de sangue, e nenhuma prova tenha sido apresentada sustentando essa tese, muitos acreditam que o presidente estimulou os quirguizes a novamente enfrentar os uzbeques para tentar se beneficiar disso. Contudo, o mais provável é que tenha sido uma mistura de vários fatores (entre eles as feridas ainda não inteiramente cicatrizadas de 1990) em um momento em que a minoria uzbeque insistia para ter direitos como o de operar escolas em sua própria língua, enfurecendo nacionalistas. Acredita-se que cerca de 400 pessoas morreram.

Após nossa reflexão, à sombra de tamanha barbárie, os ak kalpaks, meu e de Iker, foram rapidamente guardados em nossas mochilas.

Apesar do temor causado pelo passado na cidade, não posso dizer que encontrei manifestações explícitas de tensão étnica em Osh. Perto do mercado, uma simpática uzbeque me vendeu um chip de celular e me ajudou a instalá-lo. No mercado em si, os vendedores, uzbeques e quirguizes, foram igualmente generosos e sorridentes. Oferecem frutas de graça, se deixaram fotografar com grandes sorrisos, como se orgulhosos de tamanha abundância e de serem visitados por turistas.


* * *

De noite, a despedida de Kim, que segue para Tashkent amanhã bem cedo.

O elemento-surpresa do trio que saiu de Dushanbe e enfrentou os desfiladeiros, a comida e a polícia corrupta do Pamir armado apenas com câmeras fotográficas e um carro 4x4 nos deu adeus no mesmo glorioso restaurante da nossa noite de chegada em Osh, ontem. Consumimos um banquete para reis. Comemos de quase tudo um pouco - suculentas samsas, saborosos shashliks, um colorido prato com arroz e chuletas de cabrito, mantis, oromo - este último, uma espécie de minilasanha.

Muitas, muitas risadas, lembrando de momentos incríveis de poucos dias atrás. Discutindo o que poderia ter ocorrido. Já pensou se não me deixam entrar no Quirguistão por causa do problema no meu passaporte? Poderíamos estar lá até agora... E o que Iker teve em Jelondi, foi efeito da altitude ou algo diferente? E o motorista-guia, foi bom, ruim ou péssimo?

Cervejas quirguizes, várias garrafas, de baixa qualidade, mas por outro lado excelentes simplesmente por serem locais e estarem geladas. Longos e saborosos goles, abençoados, gerando uma urina bem clara, uma bênção de se ver. Sinal da gloriosa vitalidade de meus rins, santos rins, totalmente recuperados após o susto em Dushanbe.

Adeus Kim, que testemunhou meu medo e recuperação do início ao fim, do albergue na capital tajique... à doce cidade do Trono de Salomão.

Osh, 5/10, 19h

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Sunday 11 March 2018

Nos Desertos, nas Montanhas (XXXVIII): Osh

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3/10/2012

O burocrata gordo e baixinho, com olhos puxados, óculos redondos de aros prateados, sem nenhum sorriso no rosto ou empatia no olhar, apenas desprezo por mim, frustração e raiva silenciosos, me pediu para entrar em sua sala. Senta-se à sua mesa, em seu trono. Usa uniforme militar, verde gasto. Nas paredes, vejo um retrato do presidente. O ambiente está meio escuro, lá fora está um Sol forte que ilumina um pouco o ambiente, entrando não sei por onde, já que não vejo janelas. A seu pedido, fecho a porta e me sento à sua frente.

O comandante a cargo do posto da fronteira. Estou tentando entrar no seu país, o Quirguistão, vindo do Tajiquistão, esse "ninho de radicais" (aspas minhas, imaginando o que o sujeito pensa).

Olha para mim. Olho para ele. Olhos nos olhos. Daqui, não passo. Nem mais um passo. Esta fronteira está fechada. Fechada para mim.


Retrocedo rapidamente no tempo até o início desta enrascada. Subindo do vale do Panj para o lago Bulunkul, na estrada de terra, nosso carro encontrou mais um posto de controle militar tajique, como o que encontramos quando estávamos chegando ao Pamir vindos de Khorog e onde tivemos aquele longo jogo de paciência que custou ao nosso motorista US$ 15 em propina para os militares. Neste caso, novamente, uma cancela, novamente o cenário remoto - só a guarita, nenhuma cidade por perto, muita poeira, Sol -, mas desta vez, havia apenas um soldado. Um pobre coitado, entediado até a ponta dos cabelos. Minha primeira reação foi de pena ao vê-lo. Foi um sentimento que mudou quando ele pegou os passaportes de todos no carro, levou-os à sua cabine e lá ficou com eles por quase uma hora. "Checando" os documentos.

Nesse trabalho minucioso de "checagem", saiu em duas ocasiões da cabine para falar conosco e nos dar a oportunidade de lhe dar presentes. Primeiro, queria um cigarro. Falamos que não tínhamos nenhum cigarro. Foi para a guarita contrariado. Ficou lá mais tempo. Saiu, voltou a falar conosco. Insistiu que queria um "cigarro". Insistimos que não, que não tínhamos nenhum cigarro nem nenhum "cigarro". Voltou para sua cabine novamente, frustrado. A estratégia dele não estava funcionando.

A nossa, funcionou. Ou achamos que funcionou. O sujeito se cansou de jogar, saiu da guarita, nos devolveu os documentos, abriu a cancela e saímos de lá o mais rapidamente que pudemos, suspirando aliviados. Tudo bem - até que eu olho dentro do meu passaporte. Diferentemente dos meus colegas, ganhei do guarda uma "lembrancinha" (já que não demos nada a ele, ele deu algo a mim). Meu passaporte me foi devolvido com a capa arrancada do miolo, arrancada de todas as páginas. Agora, eu tinha um documento dividido por dois, a capa e o interior. Claramente foi vandalizado pelo militar, que aliás fez um excelente trabalho, arrancou as páginas sem estragar em nada o miolo nem a capa. Os vistos estavam todos lá, as páginas estavam limpas, inteiras. Mas, evidentemente, aquele passaporte não era mais o mesmo. Mostrei para meus amigos e ficamos todos horrorizados com a maldade do sujeito. Entretanto, o consenso no carro era que, já que ele não tinha estragado as páginas e os vistos, nem a página com a minha identificação, eu não teria problemas, e era só o caso de no futuro visitar um consulado para pedir um novo, sem pressa.

E segui pensando assim até o encontro com o meu nêmesis, o burocrata gordo e baixinho no lado quirguiz do passo Kyzyl-Art, na saída do Pamir, na saída da região autônoma de Gorno-Badakhstan, na saída do Tajiquistão.

"Este passaporte é inaceitável", disse ele de forma enfática, inapelável, como um sargento dando ordens a um recruta rebelde. "Você tem que voltar a Dushanbe e pegar um novo. POR AQUI, VOCÊ NÃO PASSA." Ênfase na elevação ameaçadora do tom da voz. Em russo, o que é ainda mais ameaçador.

Evidentemente, fingi não estar entendendo nada. Mostrei a ele o visto de entrada no Quirguistão, impecável. A página com a foto e dados pessoais do passaporte. Tudo perfeito. Mas a capa estava separada do miolo.

"Isto é LIXO. Não aceito este passaporte. Volte para Dushanbe."

Tamanha falta de razão logo me fez perder a calma. Em uma situação assim, entender russo já é difícil e falar, ainda mais. Pois arrisquei lhe responder em inglês (imaginei que o digno senhor, sendo o manda-chuva em uma fronteira internacional visitada regularmente por estrangeiros, arranhasse um pouco a língua).

"Voltar para Dushanbe? Mas como vou fazer isso? Isso é impossível! Eu NÃO TENHO VISTO para voltar para o Tajiquistão!". Ênfase no tom de súplica por empatia.

A questão era simples. Para chegar ao posto de fronteira onde eu me encontrava, eu e meus companheiros de viagem tivemos primeiro que passar pelo posto de fronteira tajique, onde carimbaram a saída no meu visto, que, então, deixou de ser válido. Depois disso, até chegar até o posto de fronteira quirguiz, tivemos que atravessar de carro um trecho de uns dez quilômetros de terra de ninguém, nem Quirguistão nem Tajiquistão, no meio das montanhas, na companhia apenas de vacas (que não sei de que nacionalidade eram). Aí, chegamos ao posto quirguiz. Ou seja, naquele momento, pelo que o militar me dizia. eu não poderia entrar no Quirguistão nem voltar para o Tajiquistão. Eu teria que ficar na terra de ninguém. Eu e as vaquinhas. Expliquei isso, em inglês, bem devagar.

Ele entendeu. E respondeu, em russo: "Isso não é um problema meu".

Cruzou os braços. Silêncio.

Após 10 segundos de silêncio, o jogo psicológico do sujeito estava me dominando, me fazendo ficar desesperado. Expliquei o outro detalhe que fazia aquela "solução" do militar ainda mais impraticável. Disse a ele, misturando russo e inglês: "Imagine que eu consiga entrar no Tajiquistão e ir para Dushanbe. Chegando em Dushanbe, o que vou fazer? Procurar a embaixada do meu país para tirar um novo passaporte, certo? Mas NÃO EXISTE embaixada do meu país em Dushanbe! A mais próxima é no Cazaquistão!"

Depois da explicação, segui para a última cartada, me humilhar, pedir "por favor, me deixe passar, desculpe pelo meu documento". Seus braços então se cruzaram, indicando o verdadeiro final da conversa. O guarda não quis mais escutar meus argumentos ou súplicas. Se levantou, abriu a porta, pediu para eu sair. E fui para o Sol.

Até então, não havia pensado na possibilidade de oferecer dinheiro a ele. Agora, do lado de fora, confuso, sem saber até onde o drama poderia chegar, pela primeira vez pensava em jogar a toalha - que eu poderia ter jogado na salinha, perguntando se havia "alguma taxa" que eu deveria pagar. Teria sido um problema de qualquer jeito, pois nem sabia falar a palavra "taxa" em russo. Um erro qualquer na escolha de palavras inclusive poderia piorar as coisas.

Não obstante, agora, os problemas de comunicação e ética eram irrelevantes. O guarda sequer queria falar comigo. Saí de sua salinha, saí da casa onde ela ficava, ao lado da cancela da fronteira. Eu suava. Não sabia o que fazer. Caminhei em direção a meus amigos, que estavam ao lado do carro, com as mochilas todas a seus pés, abertas, desmontadas, a pedido de outros "simpáticos" guardas de fronteira. Expliquei o caso a eles. Kim e Iker foram categóricos - sem mim, de lá, eles não sairiam. O que me deu algum ânimo e esperança.

Foi então que o nosso motorista, que até então tinha desaparecido em uma outra casa, ao lado da casa do manda-chuva que me aterrorizou, reapareceu. Veio falar comigo, perguntou o que tinha ocorrido. Expliquei da forma que consegui. Era meio óbvio de entender. E o motorista deu risada. "Deixa comigo." Pediu para eu esperar perto do carro e foi para a casa onde estava o mandarim com quem conversei. Desapareceu lá dentro por um bom tempo - meia hora ou mais. Permaneci apreensivo, conversando com meus companheiros, tentando não pensar no que estava acontecendo.

Surge novamente nosso motorista. Jovial. "Vamos", disse, olhando para o grupo todo, não só para mim. Todos entraram no carro e ele logo revelou - teve que pagar 45 somonis (cerca de US$ 5) ao sujeito. Além disso, o motorista recebeu um pedaço de papel com o número de telefone do comandante. "Este é o telefone de um amigo dele que trabalha transportando turistas de Osh (próxima parada da viagem) a Bishkek. Prometi que você ia ligar e combinar a viagem com ele quando chegasse a Osh", explicou. Agradeci efusivamente. Dobrei o papel com cuidado e o guardei no bolso.

Evidentemente, eu não iria ligar nem se minha vida dependesse disso. Em Osh, aliás, eu só teria uma prioridade - comprar uma boa cola para arrumar meu passaporte.


* * *

À nossa frente, colinas baixas e verdejantes, esparsamente pontuadas com neve, abrem-se para permitir a visão do azul intenso do grande lago Karakul, uma névoa leve revelando pela metade o panorama, e o todo criando uma imagem de beleza notável que de alguma maneira nos lembra das highlands da Escócia.
- Through Deserts and Oases of Central Asia, Ella Sykes e Percy Sykes, 1920

Horas antes do episódio na fronteira, tivemos um último e mágico momento no Pamir ao passar pela estrada ao lado do lago Karakul, perto do vilarejo de mesmo nome. O lago é vasto, com margens a perder de vista, e circundado por montanhas nevadas - inclusive, entre eles, o Pico Lênin dos tempos soviéticos, hoje conhecido como Pico Avicena. Na fronteira com o Quirguistão, esse o segundo ponto mais alto do Tajiquistão e do país vizinho (7.134 metros), só ficando atrás, no Tajiquistão, do Pico Comunismo (7.495 metros), mais a sudoeste, e no Quirguistão, do Pico Vitória (7.439 metros), bem mais para o norte.

O lago Karakul é azul, mas um azul com um tom diferente de todos os lagos que vi na vida. Um azul claro, cintilante, só um pouco mais escuro do que o azul do céu. Parece uma grande pedra preciosa, brilhando no Sol, calmo, sem que o vento enrugue sua superfície.

Calmo, celestial. Sugerindo uma pureza infinita (veja o vídeo abaixo).



Encontramos à beira do lago um pobre iaque solitário, deitado, mascando algum pedaço de arbusto. Um chifre a menos, provavelmente arrancado em alguma briga com algum macho.

Nunca me aproximei tanto de um animal da espécie. A três, dois metros da intimidadora besta, que sequer tomou conhecimento da minha presença. Olhava para o pico Lênin ou para a água azul, ou para os dois ao mesmo tempo. Sonhava em ser uma ave ou sonhava em ser um peixe. Hipnotizado pelo azul.

O azul puro - do céu sem nuvens e do lago - e o ar fresco. Um bem estar gigante tomou conta de nós e pulamos de empolgação. Passamos a tirar fotos, dezenas, muito mais do que nossa cota regulamentar. E fizemos vídeos. E respiramos fundo e fomos caminhar, andando até o vilarejo, até o iaque, até a beira da água, até aqueles outros viajantes que estavam caminhando para lá. Um casal europeu, eram alemães. Viajavam no sentido contrário de nós, vinham do Quirguistão. Queriam usar transporte público para chegar a Khorog. Avisamos que teriam muitas dificuldades. Falaram que acampariam à beira do lago, nesta beleza azul, e depois pensariam no que fazer.

Fome. No vilarejo encontramos um velhinho quirguiz muito hospitaleiro. Ele nos ofereceu, por um preço camarada, um laghman simplesmente horroroso, o pior que comi na vida. Era um macarrão cozido pelo menos uma hora além do que deveria. Uma massa sem gosto e com textura horrível que custou para descer pela garganta. Agradeci muito o chá preto, que tomei, e muito, para fazer descer tudo aquilo até meu estômago.

Quantas refeições ruins nos celestiais picos, lagos e rios do Pamir.

E quantos sonhos azuis. Calmos. E eternos.


* * *

Após passar dez dias entre algumas das montanhas mais remotas do mundo, enfrentando estradas péssimas, nos surpreendemos com uma alegria tola: sentir o carro a milhão em um asfalto liso como um tapete.

Que diferença fazem alguns quilômetros - rapidamente, o carro desceu para menos de dois mil metros de altitude. As casas deprimentes de Murghab dão lugar a outras bem acabadas, com tetos robustos, os Vs invertidos. As montanhas voltam a ter árvores em vez de apenas rochas e arbustos com cor de rocha. O ar é mais quente, o vento, prazeroso, nunca cortante. As pessoas parecem mais gordinhas. A noite cai e, lá pelas 21h, após curvas e curvas, chegamos a Osh. Estou de volta ao vale de Fergana, dessa vez do lado quirguiz.

Osh é uma cidade. Uma cidade de verdade, com trânsito, com confusão. Outra alegria tola.

Comemoramos nossa volta à civilização e o fim da grande aventura do Pamir. Fomos a um restaurante incrível - incrível simplesmente por ser um restaurante de verdade, incrível por ter opções de refrigerantes, um cardápio inteiro de escolhas possíveis para o jantar, e, talvez, o mais maravilhoso, cerveja. Um Beshbarmak, talvez o mais conhecido prato quirguiz e cazaque, foi a escolha evidente para mim, nunca foi melhor escolhido. Trata-se de carne de carneiro, cozida até se desfazer em fiapos, descansando sobre um ninho de laghman.

Brindes, sorrisos. Osh, viva Osh. E viva também, claro, esse mundo que vivemos intensamente, o Pamir, onde cada refeição horrível foi também tão maravilhosamente bem-vinda.

Osh, 5/10, 18h

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Wednesday 7 March 2018

Nos Desertos, nas Montanhas (XXXVII): Murghab

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2/10/2012

Perto de Murghab encontramos o que pareciam ser miragens arquitetônicas. Na paisagem de alta montanha, não longe do rio que leva o mesmo nome da cidade, há pequenas edificações de barro, bem rústicas, que parecem minimesquitas.

Seguíamos com o carro quando passamos ao lado de duas, a uns 20 metros uma da outra. Perguntei para o motorista o que eram. "Maguila", disse. Obviamente, achei engraçado, dada a associação automática com o pugilista brasileiro ou com personagem da Hanna Barbera. Mas se tratava da palavra em russo para "túmulo".

Paramos o carro para vê-los por dentro. Estávamos longe da cidade, em um lugar com aclives suaves e montanhas próximas, vegetação rasteira, vento frio, nenhum assentamento por perto.

Explorando os pequenos mausoléus, me parecia que eu estava ao lado de algo de grande valor histórico, algo vetusto, com possíveis tesouros escondidos.

Segundo o motorista, os túmulos foram construídos por povos de séculos atrás. Os maiores têm uns 4 metros de altura. São inteiramente cobertos de barro por fora, enquanto que por dentro é possível ver os tijolos que são a base de sua estrutura. As construções têm um formato chamativo, com pórtico e cúpula, e dentro há aparentes nichos para colocar oferendas. "Khans eram enterrados em lugares como este", disse o motorista, se referindo não aos sucessores de Genghis, mas a senhores locais. "São muito antigos. Alguns são do século III. Neles estão enterrados só quirguizes". Isso explicaria a ausência dessas estruturas ao sul, onde vivem os pamiris ismailitas. Ainda que os "quirguizes", no sentido moderno, só tenham surgido durante a URSS (quando foi criada a República Socialista Soviética do Quirguistão, embrião do atual país), durante muito tempo esse era o termo usado para designar os povos nômades que ocupavam desde estas terras até as estepes bem mais para o norte, perto da Sibéria. Ou seja, tanto os antepassados dos atuais cazaques como os dos atuais quirguizes. E certamente foi com esse sentido que o motorista usou a palavra.

Dentro dos maguilas, para nossa decepção, não encontramos nada, a não ser barro e tijolos. Tudo vazio. Teriam essas tumbas um dia sido violadas e todos os seus tesouros, levados? Ou nunca tiveram riquezas? Não há nenhuma lápide, nada escrito indicando quem encontrou aqui seu último descanso. Será que os cadáveres estão ainda ali, sob a terra, sem nenhuma indicação a não ser a própria construção? Será que um dia inscrições ou estátuas adornaram as tumbas? Ao redor do mausoléu há vários buracos profundos. Me pergunto se esses buracos são de caçadores de tesouros que foram procurar algo de valioso... ou se foram cavados para guardar restos de pessoas que nunca vieram a ser enterradas.

Tudo isso tento esclarecer fazendo perguntas para nosso motorista. Ele pouco sabe responder.

Fica o mistério, embalado pelo vento frio soprando por entre as frestas no barro, criando melodias arcanas, tristes, solitárias.


* * *

Kim usou uma palavra boa em inglês para descrever a cidade de Murghab - bleak, algo como sem vida, sem graça nenhuma. Aliás, não usou uma vez só, usou três vezes. Concordei em cada ocasião. Especialmente nesta manhã, com um lindo Sol e céu azul, fatores que aquecem o coração de qualquer um, mas que nesta cidade parecem só confirmar a descrição do meu companheiro de viagem e a minha primeira impressão, da noite anterior.

Circulamos com nosso motorista, conhecedor de todos os cantos da cidade. Por onde passamos, vimos inúmeras casas de concreto sem telhado, como se fossem contêineres, com apenas um andar. Muitos postes de eletricidade (apesar da eletricidade intermitente), ruas sem asfaltar (com exceção da Rodovia do Pamir, que cruza a cidade) e um "mercado" bem diferente dos que vi até agora. Em vez da algazarra de vendedores e vendedoras com suas roupas coloridas, encontramos mercadores quietos, taciturnos, em contêineres de verdade (usados em vez de barracas) vendendo infinitos produtos chineses, na certa trazidos pelos caminhoneiros que atravessam a fronteira. Em alguns cantos, vejo carcaças de carros depenados, provavelmente desfeitos para obter peças de reposição para outros.

A cidade inteira parece uma obra em andamento, incompleta, ou feita de forma displicente, do jeito que deu para fazer, dado o isolamento, dada a falta de recursos.

Outra coisa chamativa, mais uma vez, é a ausência quase completa, aos meus olhos, de qualquer coisa tajique. Vejo alguns militares e frases em tajique em cartazes, um deles com o inevitável retrato do presidente Emomali Rakhmon. Todavia, o pouco que encontrei parecia mais um lembrete de que estamos na saída do mundo de Rakhmon, com um pé para fora, do que um sinal de que estamos, realmente, completamente dentro do Tajiquistão. Eu esperaria uma maior presença do estado tajique impondo sua dominância cultural para tornar esta região menos "diferente". Aqui todos parecem quirguizes, todos usam o ak kalpak. O dono do lugar onde passamos a noite, a dona do restaurante onde jantamos, vendedores no mercado, pessoas na rua.

Talvez justamente essa dominância étnica quirguiz em Murghab e outras cidades do leste do Pamir explique o descaso de Dushanbe com elas. O descaso pode ser interpretado com o medo do governo central em mexer em um vespeiro. Se impor aqui poderia significar (no caso da adoção de uma estratégia truculenta, algo previsível em se tratando de Rakhmon) tentar tornar orgulhosos quirguizes menos quirguizes. Ou tomar suas terras, ou doá-las para assentamentos de tajiques. Claro que isso poderia acabar mal. O descaso também pode ser interpretado como um desprezo, uma arrogância de Rakhmon: "Se eles não estão do meu lado, não vou ajudá-los". Ou como o resultado da estratégia de Rakhmon de priorizar recursos para sua base eleitoral, em Kulob ou na capital. No sul, nas margens do rio Panj, onde o estado tajique parece também ausente, a população tem o Aga Khan para ajudá-la. Aqui, não. Não tem nada. Imagino que muitos tenham saudades dos tempos soviéticos ou acalentem regularmente sonhos de revolta, com a paciência se esgotando com tanta falta de envolvimento do governo central. Essa raiva retroalimenta o descaso do governo, e surge uma bola de neve.

Mais um legado negativo dos mapas soviéticos, outro trauma eternamente varrido para debaixo do tapete, sem solução à vista.


* * *

Nosso sonho de passar uma noite em uma iurta foi adiado.

À tarde, paramos no escritório de uma agência local de turismo comunitário (mais um eco do Quirguistão - lembro de minha experiência com turismo comunitário em Tamchy). Decidimos perguntar se havia algum acampamento de iurtas ainda montado para passar a noite nos arredores da Murghab, nas lindas montanhas. Novamente, no escritório, todos quirguizes. Lá dentro, encontramos à venda diversos livros sobre artesanato quirguiz (tapetes, chapéus, bolsas); um visitante, um velhinho, com o ak kalpak, e duas funcionárias quirguizes muito simpáticas, uma delas com uma fluência incrível em inglês.

Ela nos explicou que os acampamentos com as iurtas são montados pelos seminômades quirguizes para lá passarem o verão e, como estávamos no final da estação, muitos já tinham voltado a suas casas para passar o inverno nas cidades. Ela também disse que achava improvável que nós encontrássemos qualquer acampamento de iurtas ainda de pé no próprio Quirguistão, para onde vamos. De fato, nos nossos passeios de carro nos campos próximos a Murghab, como quando fomos ver os maguilas, não vimos nenhuma iurta. Só dentro das cidades, colocadas em alguns terrenos - como, por exemplo, a usada pelo dono da hospedagem onde passamos a noite em Murghab, que aluga a própria casa para os turistas e dorme na iurta quando a casa está tomada.

Depois de visitar o centro de turismo comunitário, voltamos a explorar a região. Seguimos por uma estrada de terra que tomava o caminho de um sereno vale rumo oeste, por onde passa um rio verde, um verde límpido, quase surreal. Novamente, cruzamos com iaques, mas, desta vez, não à distância. Um rebanho inteiro cruzou a estrada, quase atropelou nosso carro.

Depois que os gigantes peludos se foram em direção ao rio, continuamos com o carro até um povoado e de lá pegamos outra estrada menor até um ponto em que essa estrada se estreitou de tal forma que não dava mais para seguir. Havia virado uma trilha à beira de um riacho que descia das montanhas em direção ao rio maior que vimos antes.

O motorista nos disse que, seguindo a trilha, que subia de forma leve até onde eu podia ver, havia uma antiga fonte termal onde dava para se tomar banho. "Só uma hora de caminhada", disse. Também até onde eu podia ver, a trilha logo se transformava em um desafio de pular de pedra em pedra.

A aventura não me atraiu e, pela segunda vez, tomei uma decisão à revelia do grupo. Eles seguiram para a suposta fonte (não sabia se o "uma hora" realmente era ou não uma estimativa realista do motorista, péssimo de estimativas, como já ficara provado anteriormente). Eu, sozinho, decidi seguir no sentido contrário, para baixo, à beira do riozinho até o povoado que passamos no caminho, tirando fotos da flora e parando para ver com mais calma a beleza ao redor, com tempo para gastar, tranquilo, sem conversa, sem pedras para se equilibrar.

À beira do regato, muitas flores e folhas já tinham secado e outras estavam secando, anunciando a chegada iminente do outono. Flores ainda coloridas ao lado de outras douradas e marrons, quebradiças de tão secas. Empolguei-me com as fotografias, explorando detalhes intrincados dos miniuniversos castigados pelo Sol, as pétalas agora condenadas, suas curvas e formas misteriosas. Em particular, me encantei com uma flor, com pétalas que mais pareciam agulhas de algodão. Leve, delicada, com formas misteriosas, diferente de tudo que já tinha visto no Brasil.

Cheguei à cidadezinha em meia hora. Encontrei uma madrassa pintada de branco, modesta, nenhuma arquitetura esplendorosa, nada mais que concreto no teto e nas paredes. Um lugar, para variar, perdido, flutuando no limbo, em um povoado onde não viviam mais que 40 almas, quase invisíveis. Só vi uma criança, brincando de pescar à beira do rio, e uns homens tentando arrumar um carro enguiçado. Quiçá a primeira leva de moradores a abandonar as iurtas de verão nas montanhas, voltando para cá para passar o inverno.

A madrassa parecia abandonada. Pela janela, tremendo com rajadas de vento, vi uma lousa com caracteres em árabe. De resto, sinais de que estava em obras: latas de tinta, pinceis. Nesta miséria, a comunidade se mobiliza para arrumar o que considera o seu bem mais precioso, uma escola.

Ao lado, o rio verde, que seguia para Murghab paralelamente à estrada que nos trouxe até aqui, e montanhas baixas se fazendo de moldura.

Tudo parado.

Novamente, imaginei como estes povoados, Murghab e Alichur, ficam durante o inverno, com um metro de neve pelas ruas. Como sobreviver? Como não morrer de tédio, de fome, de isolamento? Como não morrer de tristeza, engolidos pela escuridão e brancura?

A resposta óbvia é que todos aqui vivem para o verão, para os breves meses gloriosos de Sol e calor. E, mesmo nesses meses, a vida não está nas cidades ou povoados, está nas montanhas, nos rebanhos de iaques e nas iurtas onde vivem há séculos e séculos. Não nas cidades, que são uma invenção distante, estranhamente desconfortável neste universo.

No verão, esbaldam-se na beleza e na liberdade, para se recolherem numa hibernação espiritual durante todo o inverno. Acho muito difícil entender isso. Acho que nenhuma pessoa que não foi criada nesta cultura poderia entender. E, mesmo se entender, não poderia se adaptar.

Voltam meus companheiros de viagem. A fonte termal, aparentemente, não estava longe, e tomar banho nela foi divino. Estão os três com sorrisos deliciados nos rostos.

Chegamos de volta a Murghab no anoitecer. No hotel, macarrão. Minha saúde está ótima, estou inteiramente recuperado, finalmente, nesta minha última noite no Tajiquistão.

Osh, 4/10, 11h02

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